Wednesday, April 28, 2010

Estado do Rio vai mapear riscos geológicos em 28 municípios

Estado do Rio vai mapear riscos geológicos em 28 municípios
19/04/2010 Fonte: Folha Online
O Departamento de Recursos Minerais do Estado do Rio vai iniciar nos próximos meses um levantamento dos riscos geológicos em 28 municípios fluminenses prioritários.

Segundo o presidente do departamento, Flávio Erthal, o mapeamento será feito em duas etapas. Na primeira, que começará em abril deste ano, serão estudados os riscos de deslizamentos de encostas em 14 municípios.

A previsão é que o levantamento de riscos nesses 14 municípios esteja pronto em agosto ou setembro deste ano. No ano que vem, o mapeamento será feito nas 14 localidades restantes.

Erthal explica que o mapeamento geológico do Estado estava previsto desde o ano passado, antes, portanto, da chuva que provocou inúmeros deslizamentos de encostas e matou mais de 250 pessoas no Estado do Rio de Janeiro, até a última semana.

Segundo ele, o mapeamento funcionará como um "pente fino", apenas para identificar áreas de potenciais riscos. A ideia é posteriormente aprofundar os estudos nesses locais identificados, para decidir que tipo de intervenção poderá ser feita nessas áreas.

Erthal explica que, depois das mortes da última semana, o problema agora é evitar que chuvas no futuro façam mais vítimas. "O drama hoje é o seguinte: quem ficou ainda nas casas dependuradas, nas casas que estão com problemas precisa ser retirado e essas áreas isoladas", disse.

O levantamento geológico dos 28 municípios custará cerca de R$ 2,5 milhões, com verbas do Fecam (Fundo Estadual de Conservação Ambiental). O trabalho será feito por empresas privadas, escolhidas por licitação, em abril.

Moradia

Ontem, o ministro das cidades, Márcio Fortes, e o governador do Rio, Sérgio Cabral, entregaram simbolicamente as chaves dos primeiros apartamentos aos desabrigados em consequência das chuvas que atingiram o estado no início do mês.

Os primeiros beneficiados foram 50 famílias do morro do Urubu, zona norte da cidade do Rio, que tiveram de deixar suas casas que ameaçavam desmoronar. Eles irão se mudar definitivamente na próxima quarta-feira (21).

Tuesday, April 20, 2010

Ainda Niterói...

A remoção de comunidades inteiras que vivem em áreas de risco não é uma solução viável, pelo menos no curto prazo. A avaliação é do engenheiro civil Elson Nascimento, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "É claro que, em alguns casos, as pessoas têm de ser removidas imediatamente. Mas não consigo pensar na retirada de comunidades, de bairros inteiros, de forma generalizada", diz.Prefeitura poderia ter evitado tragédia
no morro do Bumba, em Niterói (RJ)

Fonte: BBC Brasil

Há dois anos o professor coordenou um levantamento detalhado sobre as áreas de risco na cidade de Niterói. O plano de prevenção, no entanto, apesar de ter sido encomendado pela prefeitura, ainda não saiu do papel.
Com a intensificação das chuvas nos últimos dias e os consequentes deslizamentos, autoridades públicas voltaram a discutir a remoção de famílias que vivem em áreas de risco ou de proteção ambiental. Para Nascimento, essa é uma "questão complexa" e não pode ser discutida em um momento de "tensão". "No momento de crise, de tensão, como ficam toda a população e dirigentes, é comum sacarem soluções e ideias com o intuito resolver logo o problema. Mas o assunto tem de ser discutido em momento adequado e com soluções viáveis", diz o especialista.
BBC Brasil - O secretário de Defesa Civil do Estado do Rio, Sérgio Côrtes, demonstrou grande surpresa ao constatar que as casas, no morro do Bumba, estavam construídas sobre um lixão. É possível que um fato como esse tenha passado despercebido por tanto tempo?
Elson Nascimento - Eu estive nessa região há cerca de dez anos, justamente verificando um deslizamento de terra, com vítima. A ocupação estava começando ainda, com a construção de uma estrada de acesso ao ponto mais alto do lixão, o que alterou o caminho de drenagem natural das chuvas. A água, então, acabou descendo por uma região mais instável, arrastando casas. Naquele momento a gente constatou a presença de gás metano. Eram poucas casas, mas por causa do gás, sugerimos que as pessoas saíssem dali. Mas alguns moradores disseram que estavam gostando muito de morar ali e que estavam até chamando parentes, amigos, para ocuparem aquela área também. Essa comunidade expandiu em cima de um material impróprio para qualquer tipo de edificação. BBC Brasil - As autoridades sabiam? Nascimento - Sim, claro, isso era de conhecimento.
BBC Brasil - O poder público diz que o problema está diretamente ligado à ocupação irregular em algumas áreas. Até que ponto devemos esperar que o próprio governo coíba esse processo?
Nascimento - Esse é um assunto extremamente complexo. As pessoas não têm para onde ir e acabam assumindo esse risco. E o governo, por sua vez, não tem uma fiscalização eficiente. A gente não poderia apontar um ou outro culpado. Mas um programa de habitação, claro, tem que ser pensado, além de uma drenagem mais constante.
BBC Brasil - Se o senhor fosse apontar uma solução prioritária para essa questão dos deslizamentos, qual seria?
Niterói não implementou plano antidesastre
A prefeitura de Niterói (RJ) não colocou em prática um plano de prevenção de riscos elaborado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), com financiamento do Ministério das Cidades e da própria prefeitura. Finalizado em 2007, o plano custou R$ 120 mil e previa ações em vários pontos suscetíveis à ocorrência de desastres causados pela ação do tempo



Nascimento - A drenagem, sem dúvida. Mas uma drenagem periódica. Sobretudo nas áreas que têm um mínimo de rede de escoamento das águas, o problema sério é a manutenção. Nenhum projeto de drenagem, por melhor que seja, vai funcionar se não for constante. E isso tem que ser feito de maneira preventiva, fora da época das chuvas. Esse é o maior gargalo. O problema é que, quando abre o sol, as prioridades do poder público mudam completamente. E aí, chega o fim do ano e tudo se repete. Nós, em um clima tropical, não sabemos ainda tratar de eventos climáticos. A gente só cuida deles no momento do acontecimento.
BBC Brasil - Algum país pode nos servir de exemplo?
Nascimento - Não sei se chega a ser exemplo, mas um dos países que tem um dos maiores problemas de drenagem no mundo é a Holanda, que teve em 1953 um acidente grave que matou quase 2 mil pessoas. Desde aquele período o país investiu muito nas obras de infraestrutura para drenagem, mas sobretudo na manutenção periódica. Lá, o administrador regional, na época que antecede o período chuvoso, ele tem de dar prioridade à limpeza das galerias e manutenção dos canais. Um pouco desse conceito a gente teria que adotar. Com essas chuvas aqui no Rio e em Niterói, a gente vê uma mobilização grande para retirar o entulho, as pessoas. Mas esse movimento não acontece antes das chuvas.
BBC Brasil - No caso do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, o prefeito Eduardo Paes decidiu que todos os moradores serão removidos, pois as obras de contenção seriam mais caras do que a transferência das famílias. Essa é uma solução que deve ser replicada?
Nascimento - A ocupação das encostas é uma situação muito ampla. E eu não vejo, de maneira viável, a remoção desse pessoal todo no curto prazo. É claro que, em alguns casos, as pessoas têm de ser removidas imediatamente. Mas não consigo pensar na retirada de comunidades, de bairros inteiros, de forma generalizada. Eu trabalhei em projetos do favela-bairro e um dos objetivos era esse, prover as comunidades mais carentes com serviços de água, esgoto e redes de drenagem. No momento de crise, de tensão, como ficam toda a população e dirigentes, é comum sacarem soluções e ideias com o intuito resolver logo o problema. Mas o assunto tem de ser discutido em momento adequado e com soluções viáveis. Precisamos aprender a discutir hoje o que vai acontecer durante as chuvas do final do ano. É assim que acontece nos países desenvolvidos. Não é aceitável que todo ano as chuvas causem calamidade em algum lugar, seja no Rio, em Niterói, seja em Angra, em São Paulo.
BBC Brasil - Como garantir que cada uma dessas cidades tenha um plano de prevenção? O senhor mesmo ajudou a fazer um plano para Niterói, que ficou pronto em 2007 e ainda está na gaveta...
Nascimento - Com certeza, a integração com o governo estadual precisa funcionar. Agora mesmo estamos vendo as autoridades do Rio solicitando ao governo federal cerca de R$ 370 milhões para lidar com o desastre, mas em nenhum momento se falou em um plano de risco. Acho que seria o momento para exigir isso. A prefeitura sempre busca a universidade para discutir a implementação desses projetos, mas isso não passa de discurso. O governo federal poderia, sim, exigir essa implementação em contrapartida à transferência de recursos.
BBC Brasil - Como é o plano e o que ele aponta como prioridade?
Nascimento - Ao todo são cinco relatórios, com diagnósticos de problemas, sugestão de soluções e de fontes de financiamento. Eu diria que o ponto principal, o mais imediato, é mesmo a criação de um sistema de drenagem para as águas das chuvas. Em diversas situações sugerimos, por exemplo, a construção de canaletas. Há também, claro, a necessidade de reconstrução da vegetação. Vale lembrar que também sugerimos medidas pontuais e de custo mais baixo, como a instalação de medidores de chuva, que Niterói não tem.
BBC Brasil - A cidade não tem um medidor, em nenhum ponto?
Nascimento - Não. Essas informações que temos visto e ouvido na imprensa, de que choveu 'tanto' em Niterói nos últimos dias, são feitas com base em estimativas levantadas pelos medidores instalados na cidade do Rio. O que é muito ruim, pois a possibilidade de deslizamentos está diretamente ligada à intensidade e volume das chuvas. O ideal é termos alguns medidores mais modernos, que podem custar até R$ 3 mil cada, mas também sugerimos as opções caseiras, feitas com garrafas pet. A própria população pode observar, de casa, o volume das chuvas e assim ficar mais atenta.
BBC Brasil - Quanto custaria a execução desse plano?
Nascimento - A estimativa é de que o plano possa ser todo implementado em cinco anos, com um gasto aproximado de R$ 19 milhões.

Sunday, April 18, 2010

Niterói em luto !!



Foto: Samuel Tosta

Monday, April 12, 2010

O que faz os japoneses serem tão cuidadosos é a educação

O que faz os japoneses serem tão cuidadosos é a educação: eles começaram a separar o lixo há 500 anos.

http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL1562975-16020,00-MORADORES+DE+BAIRRO+JAPONES+REAPROVEITAM+QUASE+DO+LIXO.html

Sunday, April 11, 2010

As enchentes...em 1915

As enchentes

De Lima Barreto publicado no jornal Correio da Noite, Rio, 19-1-1915.

As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro,
inundações desastrosas. Além da suspensão total do tráfego, com uma
prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade,
essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de
haveres e destruição de imóveis.
De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do
dever de evitar tais acidentes urbanos. Uma arte tão ousada e quase tão
perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples
problema.
O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode
estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida
integral.
Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha! Não
sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não
é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros
municipais, procrastinando a solução da questão.
O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade,
descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio. Cidade
cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes
precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse
acidente das inundações. Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os
aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos
problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.

Saturday, April 10, 2010

Estatuto da Cidade comentado em português

O Estatuto da Cidade Periférica
Erminia Maricato

http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/biblioteca/plano-diretor/publicacoes-institucionais/o-estatuto-da-cidade-comentado

O Estatuto da Cidade (EC), lei federal brasileira nº 10.257, aprovada em 2001, tem
méritos que justifi cam seu prestígio em boa parte dos países do mundo. As virtudes do
EC não se esgotam na qualidade técnica ou jurídica de seu texto. A lei é uma conquista
social cujo desenrolar se estendeu durante décadas. Sua história é, portanto, exemplo de
como setores de diversos extratos sociais (movimentos populares, entidades profi ssionais,
sindicais e acadêmicas, pesquisadores, ONGs, parlamentares e prefeitos progressistas)
podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcançá-la, mesmo num contexto
adverso. Ela trata de reunir, por meio de um enfoque holístico, em um mesmo texto,
diversos aspectos relativos ao governo democrático da cidade, à justiça urbana e ao
equilíbrio ambiental. Ela traz à tona a questão urbana e a insere na agenda política nacional
num país, até pouco tempo, marcado pela cultura rural.
No entanto, a presente publicação não se aterá em tecer loas ao texto da lei ignorando os
limites e constrangimentos presentes no processo de sua aplicação. O EC não será tratado
aqui, tampouco, como um exemplo universal aplicável a qualquer realidade embora vamos
constatar que muitas cidades do mundo não desenvolvido apresentam semelhanças. Ao
contrário, buscar-se-á apresentá-lo destacando a complexidade e as contradições que estão
presentes em sua aplicação, mesmo na realidade brasileira, que inspirou sua formulação.
Veremos, ainda, ao longo das próximas páginas que o texto legal, embora fundamental,
não é sufi ciente para resolver problemas estruturais de uma sociedade historicamente
desigual na qual os direitos, como por exemplo o direito à cidade ou à moradia legal, não
são assegurados para a maioria da população. Parte das grandes cidades brasileiras tem
a maioria de sua população morando informalmente sem observação de qualquer lei ou
plano urbanístico, sem concurso de arquitetos e engenheiros para construção de seus
bairros ou casas, sem fi nanciamento para as obras que compõem uma gigantesca produção
doméstica de espaço urbano que evidentemente resulta precário. O Brasil não está sozinho
nessa condição como todos sabem e como revelam os relatórios da UN-HABITAT1. Talvez
a maior parte dos domicílios urbanos do mundo todo se faça dessa forma, compondo
amontoados de pessoas em lugares que são não cidades já que ali não estão ausentes
apenas a infraestrutura que caracteriza o espaço urbano, mas também todos os serviços
urbanos e equipamentos coletivos.
1. Ver a respeito as publicações UN-HABITAT. Cities without slums. Global Report on Human Settlements, 2002;
UN-HABITAT Cities in a globalizing world. Global Report on Human Settlements, 2001. www.unhabitat.org
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Aplicar o Estatuto da Cidade em tal contexto, culturalmente excludente, tradicionalmente conservador, não
é tarefa simples especialmente porque nessas sociedades chamadas de emergentes, não desenvolvidas,
em desenvolvimento ou periféricas, o poder político e social vem associado à propriedade patrimonial.
O acesso a terra, seja ela urbana ou rural, sempre foi um dos temas mais importantes da história
da humanidade. O acesso a terra nas sociedades pobres que se urbanizam é mais crucial. E essa é
a questão-chave tratada no Estatuto da Cidade. Vamos mostrar, portanto, a importância que a lei, de
fato, tem para a construção de cidades mais justas e ambientalmente equilibradas e vamos observar os
conflitos que sua aplicação enfrenta no Brasil, sem sustentar a pretensão ingênua de que uma lei (ou um
plano) constitui, em si, soluções para problemas que são históricos e estruturais.
O Estatuto da Cidade não trata apenas da terra urbana. Assumindo um enfoque holístico a lei inclui:
diretrizes e preceitos sobre planos e planejamento urbano, sobre gestão urbana e regulação estatal, fiscal
e jurídica (em especial sobre as propriedades fundiárias e imobiliárias), regularização da propriedade
informal, participação social nos planos, orçamentos, leis complementares e gestão urbana, parcerias
público-privadas, entre outros temas. A reunião de leis previamente existentes, de forma fragmentada,
com instrumentos e conceitos novos sob o rótulo de Estatuto da Cidade torna mais fácil o reconhecimento
da questão urbana. A lei deu unidade nacional ao trato das cidades. E se, mesmo após oito anos de sua
promulgação, existem juízes que ainda a ignoram e tratam a propriedade privada como um direito absoluto
e não relativizado pela sua função social, podemos dizer que essa prática está cada vez mais difícil, já que
o formato de unidade abrangente da lei chamada de estatuto tornou mais fácil sua divulgação.
A Constituição brasileira de 1988, promulgada em um momento de ascenso das forças sociais que
lutavam pela democratização do país, assegura ao poder municipal a competência para definir o uso e a
ocupação da terra urbana, e o Estatuto da Cidade reforça essa orientação autônoma e descentralizadora.
O fortalecimento da autonomia do poder local se deu como reação à centralização autoritária da política
urbana exercida pelo governo ditatorial no período anterior, entre 1964 e 1985. Com base nas diretrizes
federais sobre o desenvolvimento urbano e sobre a propriedade privada da terra e imóveis, o planejamento
e a gestão urbanos, bem como a resolução de grande parte dos conflitos fundiários, foi remetida para
a esfera municipal2. É no município, por meio da lei do Plano Diretor ou legislação complementar, que
serão definidos os conceitos de propriedade não utilizada ou subutilizada e que serão gravadas, em base
cartográfica, as propriedades a serem submetidas a sanções de instrumentos previstos no Estatuto da
Cidade. É no município ainda que serão definidas as parcerias público-privadas, as operações urbanas, a
aplicação de um grande número de instrumentos jurídicos e fiscais entre outras iniciativas. A autonomia
municipal no tratamento do tema é, portanto, muito grande na legislação brasileira. Dependendo da
correlação de forças no município a lei poderá ter aplicação efetiva ou não3.
2. A definição do modelo de gestão metropolitana foi remetida às Constituições Estaduais e tem sido um tema pouco
prestigiado no Brasil. Por outro lado, a questão ambiental ficou sob a competência complementar e concorrencial dos
três níveis da federação.
3. Aos críticos dessa significativa descentralização queremos lembrar, que em países de território extenso e diversidade
geográfica como o Brasil e, as cidades têm características muito diferenciadas (sítio, clima, sociedade, cultura) — o que
recomenda muita atenção com as condições locais. As regras que regulam o direito de propriedade são estabelecidas em
nível federal e sua aplicação mais ou menos progressista dependerá da correlação de forças local.
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progressivo apresentados Em que pese a abordagem holística composta por diferentes aspectos, o tema central do EC é a função
social da propriedade. Em síntese, a lei pretende definir como regular a propriedade urbana de modo
que os negócios que a envolvem não constituam obstáculo ao direito à moradia para a maior parte da
população, visando, com isso, combater a segregação, a exclusão territorial, a cidade desumana, desigual
e ambientalmente predatória. O EC trata, portanto de uma utopia universal: o controle da propriedade
fundiária urbana e a gestão democrática das cidades para que todos tenham o direito à moradia e à cidade.
Se, no século XVIII, a Revolução Francesa seguiu a utopia de libertar a terra das relações de servidão e
garantir seu acesso amplo por meio da propriedade privada individual, no século XXI a grande utopia é
a restrição ao direito individual de propriedade tendo em vista o interesse coletivo4. Num mundo que se
urbaniza crescentemente e que a maior contribuição a esse processo de urbanização mundial tem origem
nos países pobres, o tratamento dado a terra no Estatuto da Cidade merece ser conhecido.
Para compreender assunto tão complexo e controverso, vamos partir de algumas perguntas:
Qual o conteúdo do Estatuto da Cidade que relativiza e limita o direito de propriedade privada? Como
pretende o EC regular as propriedades urbanas? Quais as suas virtudes que permitiriam corrigir injustiças
e desequilíbrios ambientais? Como a lei assegura a participação social na gestão das cidades? Qual o
papel que o EC atribui aos diferentes níveis da estrutura federativa?
Como foi construída socialmente a ideia de limitar o direito de propriedade de forma a subordiná-lo a
uma função social?
Como foi possível ao Congresso Nacional Brasileiro, historicamente conservador, num país socialmente
desigual, aprovar o Estatuto da Cidade? Como foi possível uma sociedade patrimonialista, onde o poder
político e social se confundem com a detenção de patrimônio (especialmente a propriedade de terras e
imóveis), admitir a aprovação de uma lei tão avançada?
Como se dá sua aplicação? Quais são os obstáculos e constrangimentos colocados à sua aplicação?
Como se tem dado o impacto do EC nas cidades brasileiras?
4. A Constituição Francesa de 1791, precedida da Declaração dos Direitos do Homem, menciona
a propriedade como um dos “direitos naturais e imprescritíveis do homem” além de direito
“inviolável e sagrado”. A Constituição Americana ,de 1787, considerou a propriedade privada
como um dos “direitos essenciais e inalienáveis”.
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As especificidades das cidades periféricas5
Parte dessas questões será respondida neste primeiro capítulo e parte nos capítulos seguintes. Para
começar, faz-se necessário abordar aspectos fáticos e conceituais, específicos da realidade urbana
dos países que pertencem àquilo que podemos chamar de capitalismo periférico6. Por que tratar
dessa especificidade? Porque há uma profunda diferença entre as cidades do mundo desenvolvido
(basicamente os países do G7) e não desenvolvido que tem a ver com a regulação estatal sobre o
espaço urbano e o alcance do mercado residencial privado. Por isso Londres, Paris, Nova Iorque,
Boston, Toronto, Tóquio são cidades muito diferentes das cidades do México, São Paulo, Rio de Janeiro,
Mombai e Joanesburgo, apenas para citar alguns poucos exemplos. Nas primeiras, o Estado exerce,
de fato, a regulação sobre a totalidade do solo urbano seguindo as leis existentes com exceções não
significativas. Nas demais, é frequente observar que a maioria da população pode habitar espaços
informais que são também segregados em relação à cidade oficial ou legal onde os planos e leis
urbanísticas não são aplicados. As exceções são mais regra do que exceções7.
Nos países centrais, o mercado privado atende à necessidade de habitação da maior parte da população
sendo que uma minoria, que varia de país para país, necessita de subsídio ou apoio estatal para a provisão
da moradia. No Canadá, por exemplo, 30% da população são classificados como “non market housing”.
Estas necessitam de auxílio público para resolver seu problema de moradia. Já no Brasil, ou nos países
periféricos de um modo geral, passa-se exatamente o contrário: mais de 70% da população (o que inclui
parte da classe média) está fora do mercado privado legal e necessitaria de subsídios8.
Uma das características dessas cidades periféricas é um mercado formal ou legal limitado que
frequentemente oferece um produto de luxo para uma minoria da população. Os lucros, decorrentes
de atividades especulativas com imóveis, ocupam um lugar muito importante nesse mercado,
pressionando a disputa por terras e ampliando seu preço. A retenção de terras ociosas nas cidades
é parte estrutural desse modelo que combina: mercado restrito e frequentemente luxuoso, lucro
especulativo, ausência de políticas sociais em escala significativa (isto é, uma escala que vá além das
festejadas best practices), escassez de moradia, segregação e informalidade9.
5. Certamente a classificação das cidades do mundo todo exigiria um maior detalhamento tipológico. Vamos utilizar uma abordagem dual – cidades
periféricas e cidades desenvolvidas ou centrais – como recurso simplificador adequado para o que se pretende nessa rápida apresentação.
6.Usaremos indiferentemente, sem rigor acadêmico, os conceitos correntes aplicados por instituições internacionais na classificação dos diferentes
países do mundo embora reconhecendo que essas denominações não são neutras: países desenvolvidos ou em desenvolvimento; países centrais,
semiperiféricos ou periféricos; países emergentes ou pobres; países do sul ou do norte.
7. Muitas das afirmações feitas aqui estão baseadas em observação empírica, além de bibliográfica, que é resultado de atividades de consultoria ou
de pesquisa da autora em cidades de vários países do mundo. Entretanto a maior parte das informações provém do universo urbano brasileiro. As
generalizações devem ser vistas com alguma cautela.
8. A retomada do investimento habitacional pelo Governo Federal, no Brasil, a partir de 2004, que estava relativamente paralisada desde os anos 1980,
tem apontado para uma mudança nesse padrão. Foi lançado um novo programa que busca a construção de um milhão de moradias – Minha Casa, Minha
Vida – reforçando essa tendência e buscando ação anticíclica em relação à crise que eclodiu em setembro de 2008. Tudo indica que o mercado privado
legal está em ampliação para atender o que poderíamos chamar de classes média e média baixa. Na América Latina, esse movimento de produção
massiva de moradias pôde ser observado no Chile (anos 1990) e México, mais recentemente.
9. Estamos desenvolvendo a ideia de que a segregação e a informalidade não são resultados espontâneos, mas produto de um processo histórico de
produção do espaço que segue, espelha e reproduz as características da sociedade desigual. Cabe lembrar, entretanto, que frequentemente o Estado
atua diretamente produzindo a segregação ou a exclusão urbanística seja por regulação legal como aconteceu na África do Sul com o apartheid, seja pela
transferência de favelas que são retiradas do contexto urbanizado valorizado pelo mercado para áreas distantes da cidade formal.
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Escassez de moradia, agressão ambiental, ilegalidade e violência
Outra das principais consequências da falta de alternativas de moradias legais (ou
seja, moradias reguladas pela legislação urbanística e inseridas na cidade oficial) está na
agressão ambiental. A ocupação de áreas ambientalmente frágeis — beira dos córregos,
encostas deslizantes, várzeas inundáveis, áreas de proteção de mananciais, mangues —
é a alternativa que sobra para os excluídos do mercado e dos programas públicos pouco
abrangentes. Não é por falta de leis ou planos que essas áreas são ocupadas, mas por falta
de alternativas habitacionais para a população de baixa renda. Em algumas metrópoles
brasileiras, como São Paulo e Curitiba, as regiões onde a ocupação por moradias ilegais
mais cresceu na década de 2000 foram as Áreas de Proteção dos Mananciais, ou seja,
áreas produtoras de água potável, onde a ocupação é proibida por lei, mas não o é na prática
da ocupação do território. São as áreas vulneráveis, protegidas por legislação ambiental que
não interessam ao mercado imobiliário privado legal e “sobram” para as moradias pobres.
As principais formas de moradia precária são produtos de loteamentos piratas e
clandestinos ou de invasões de terra que dão início à formação de favelas. Os cortiços,
moradias ou cômodos alugados — em áreas centrais ou não — têm relevância relativa
nas diferentes cidades. Em geral não têm a mesma importância quantitativa das primeiras
formas citadas, embora sejam fundamentais para a requalificação de áreas urbanas centrais
sem que se expulsem moradores pobres.
Se considerarmos o número de favelas e o número de seus moradores que invadem terra
para morar, podemos dizer que uma gigantesca invasão de terras urbanas é consentida pelo
Estado, nos países não desenvolvidos, mesmo contrariando as leis urbanísticas ou de proteção
ambiental. Essas invasões não são dirigidas por movimentos contestatários, mas pela falta de
alternativas. Já que todos precisam de um lugar para morar e ninguém vive ou se reproduz
sem um abrigo, esse consentimento à ocupação ilegal, não assumido oficialmente, funciona
como uma válvula de escape para a flexibilização das regras. Mas esse consentimento e
flexibilização se dão apenas em áreas não valorizadas pelo mercado imobiliário. O mercado
mais do que a lei — norma jurídica — é que define onde os pobres podem morar ou invadir
terras para morar. Há uma lógica que relaciona mercado e aplicação da lei.
Além disso, nas grandes e médias cidades, os rios, riachos, lagos, mangues e praias
tornaram-se canais ou destino dos esgotos domésticos. No Brasil, 34,5 milhões de pessoas
não são atendidos pelas redes de esgotos nas cidades. Somando-se a estes os domicílios
que contam com apenas fossa séptica, teremos 50% do total da população brasileira.
Além do mais, 80% do esgoto coletado não são tratados, sendo despejado nos cursos de
água. Mais do que efluentes industriais atualmente, o esgoto doméstico é o poluidor, por
excelência, dos recursos hídricos10.
10. Esses dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para 2009, com base nas fontes
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ambos organismos do Governo Federal.
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A ausência da lei urbanística parece fornecer um espaço profícuo para a ausência
generalizada de leis, cortes, tribunais e advogados para a resolução de conflitos
e para a garantia de direitos sociais, civis e humanos. A falta da gestão pública, e
a inexistência de qualquer contrato social, remetem os bairros homogeneamente
pobres para a situação de “terra de ninguém” onde “a lei é a do mais forte”. É
compreensível o aumento do número de homicídios e do crime organizado nas
grandes cidades do mundo não desenvolvido nos últimos 30 anos. Em alguns bairros
dominados por um poder que, apenas aparentemente é paralelo, vamos encontrar
a concentração de mazelas que demonstram que a “exclusão é um todo”. Além
da ilegalidade urbanística, dos altos índices de violência, estão presentes, nesses
bairros mais vulneráveis (socialmente e ambientalmente) a desproporcional taxa de
mulheres chefes de famílias, maior taxa de desemprego, maior proporção de negros,
taxa de escolaridade abaixo da média urbana, renda média abaixo da renda média
urbana, taxa mais alta de mortalidade infantil, ocorrência frequente de doenças por
epidemia etc. Podemos denominar esses bairros de bombas socioecológicas. As
autoridades públicas e até mesmo a polícia têm dificuldade de circular livremente
por essas áreas que estão liberadas do “contrato social”.
Raízes da sociedade periférica
É engano frequente considerar que as cidades periféricas estão num estágio mais
atrasado em relação ao percurso seguido pelas cidades do mundo desenvolvido e
que um esforço de gestão e condições favoráveis de governabilidade é suficiente
para superar o gap entre elas. Não faltam receitas que são oferecidas por agências
internacionais e consultores que têm origem nos países do norte para superar
essa distância. É evidente que determinados governos urbanos, em determinadas
condições políticas e econômicas, podem minorar as mazelas das cidades mais
pobres e isso não é pouco importante. Mas o que se quer destacar aqui é que jamais
será possível equipará-las com as cidades desenvolvidas mantendo a relação de
dependência subordinada e utilizando receitas do primeiro mundo. Isto porque elas
são estruturalmente diferentes e não estão em diferentes etapas de um mesmo
percurso histórico rumo ao desenvolvimento. Nas cidades periféricas constatamos a
convivência da falta de esgoto e frequentemente até de alimento com o consumo de
bugigangas eletrônicas, tênis de marca ou TV a cabo como acontece nas favelas do
Rio de Janeiro ou de São Paulo. Num mesmo momento histórico, estão presentes
o modo de vida pré-moderno (a produção doméstica da moradia, a proximidade dos
dejetos, por exemplo) convivendo com o modo de vida pós-moderno baseado na
comunicação revolucionada. No Brasil, em 2005, 163 milhões de pessoas tinham
acesso a TV em cores enquanto 123 milhões — 32% a menos — tinham acesso ao
esgoto por meio de uma rede coletora ou fossa séptica (IBGE/PNAD 2005).
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Os imperativos de um modelo de consumo, que é universal nos países do núcleo
hegemônico, penetram as mentes e corações da maior parte da humanidade, que se
mantém na pobreza, e dificultam a possibilidade de uma construção endógena.
Essa simultaneidade de diferentes padrões tecnológicos é a marca da sociedade
urbana periférica e consequentemente das cidades. O processo de modernização
incompleta inclui avanços modernizantes sem abandonar as marcas do atraso. Tratase
de um capitalismo que, mesmo durante o período da industrialização tardia, foi
caracterizado pelo assalariamento precário ou pela informalidade predominante nas
relações de trabalho. Não estava e não está garantido o que poderíamos considerar um
padrão mínimo conquistado pela modernidade: previdência social, moradia, educação
universalizada, saneamento básico etc., mas sobre essa base precária está presente
a pressão exercida pelo mercado na direção do consumo de produtos de ponta que
poderiam ser classificados como supérfluos ou não prioritários. O poder da logomarca,
a penetração da publicidade são avassaladores e criam novas necessidades. Os
valores do consumo conspícuo penetram todos os poros vazios da existência dos
adolescentes pobres. A ética do trabalho não se sustenta até porque a oferta de
emprego ou de trabalho, ainda que informal, dificilmente acompanha, especialmente
nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, o crescimento da chamada
população economicamente ativa. Exatamente nesse período, as mazelas trazidas
pela globalização neoliberal aprofundaram a pobreza e a desigualdades urbanas nas
cidades periféricas. Por globalização entendemos a ampliação internacional dos
mercados revolucionada por grandes mudanças tecnológicas (movimento estrutural)
combinada ao ideário neoliberal: primazia do mercado, enfraquecimento dos Estados-
Nação, recuo das políticas sociais, privatizações e mercantilização dos serviços
coletivos, e consequente aumento do desemprego e da violência.
A busca das raízes dessa condição nos remete, num primeiro momento, à relação
colonial e depois imperialista: associação do capital internacional com uma elite
local visando interesses complementares. Interesses esses que resultaram, durante
séculos, na exportação da riqueza excedente aí produzida, na utilização da mão de obra
barata ou mesmo escrava (que assegura uma cultura de desprestígio do trabalho e do
trabalhador), na importância crucial do latifúndio e no travamento do mercado interno.
Seja por meio da exportação de produtos primários, seja por meio de um processo
tardio de industrialização ou de um engate passivo na globalização financeirizada, a
história nos mostra a persistente falta de autonomia política e a fragilidade do mercado
interno que pode conduzir ao desenvolvimento social e econômico mais includente.
Esse tema não será desenvolvido aqui. Ele pretende mostrar apenas que alguns
países do mundo apresentam características comuns que lhes permitem um diálogo
proveitoso ainda que as especificidades das cidades e das experiências sociais locais
sejam únicas e exijam todo respeito e atenção.
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Motivos para esperança: propostas aderentes à realidade
Não se pretende, com essa constatação crítica, levar o leitor ao desânimo a partir de um pensamento
eivado de fatalidade. Ao contrário, pretende-se mostrar que apenas o conhecimento científico dessa
realidade pode nos conduzir a propostas adequadas e específicas. O conhecimento da situação concreta
de cada cidade, ou seja, o combate ao “analfabetismo urbanístico” pode constituir uma vacina contra
ideias inadequadas à realidade local11. A influência do pensamento urbanístico dos países do norte e a
importação de modelos de planejamento e gestão urbanos só fizeram aprofundar a cidade partida entre
incluídos e excluídos onde se verifica a existência de verdadeiras “ilhas de primeiro mundo”, reguladas
por zoneamento detalhado, marcadas por uma arquitetura fashion, local de produção do mercado formal.
Do outro lado está a cidade informal, construída predominantemente pelos seus próprios moradores
com seus parcos recursos. A representação dessa cidade busca afirmar a hegemonia das “ilhas de
primeiro mundo” tomando a parte pelo todo. Além de invisíveis, os bairros informais também são
desconhecidos, em grande parte, nos cadastros, mapas, arquivos e registros urbanos.
A cidade periférica é marcada pelo mimetismo cultural decorrente da hegemonia exercida pelos
países centrais por meio dos veículos de comunicação, universidades e principalmente pela expansão
internacional do mercado. A realidade local dificilmente é o nexo central para o desenvolvimento do
conhecimento. Está presente, também, uma dificuldade de acúmulo progressivo do saber a partir
das diversas experiências cuja continuidade é frequentemente rompida pelo conhecimento externo.
Os instrumentos de gestão urbana copiados de fora não levam em conta a realidade dessas cidades,
com grande parte da população (e não poucas vezes, a maior parte) excluída do mercado privado e da
condição legal de moradia, além das condições mínimas aceitáveis de urbanização. Os planos diretores
e especialmente as leis de zoneamento ignoram que, na cidade periférica, o mercado residencial privado
atende a uma pequena porcentagem da população, e que temos aí problemas que não se colocaram
aos urbanistas e arquitetos das prestigiadas universidades americanas, apenas para dar um exemplo. A
ausência de um desenvolvimento endógeno e um planejamento idem, dirigidos para a realidade social
existente, buscando fortalecer o mercado interno, é um dos grandes problemas que — se não podem
ser superados localmente ou nacionalmente, já que a expansão dos mercados é um fenômeno global —
podem ser minimizados. O que se propõe aqui é o desenvolvimento de propostas aderentes à realidade
da cidade periférica e a superação da dominação cultural e técnica. Há muito de utopia nessa ideia; e os
conflitos não desaparecerão já que é crescentemente impossível desvincular a estrutura social endógena
da exógena. Mas a adesão à concretude — social, econômica, política, cultural, urbana e ambiental — é
sempre um avanço que permite desvendar ideologias mascaradoras da realidade e acabam tendo um
efeito pedagógico sobre a leitura emancipadora das especificidades de cada sociedade.
11. “Ideias fora do lugar” é a expressão usada pelo escritor brasileiro Roberto Schwarz para
denominar as ideias geradas pelo modo de produção dos países desenvolvidos que são transferidas
sem mediações para a realidade dos países periféricos. Um bom exemplo dessa contradição foi a
chegada do ideário liberal europeu no Brasil escravista no século XIX. A cultura, a política e a arte
praticada pela elite se inspiravam no liberalismo, mas a base da economia era o escravismo.
12
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13
Um exemplo que superou essa dificuldade é a prática de urbanização de favelas. A urbanização ou requalificação
urbanística e social de favelas pode ser uma boa proposta quando ela está bem localizada na cidade e seus moradores têm
oferta de emprego, além de serviços e equipamentos coletivos nos arredores. Os métodos e técnicas de urbanização de
favelas têm tido um desenvolvimento satisfatório e um crescente aperfeiçoamento nos países periféricos. Ao contrário
do que muitos pensam, essa ação pode constituir uma importante intervenção de recuperação ambiental além de
social já que as favelas estão, na maior parte das vezes, situadas em áreas ambientalmente frágeis. Este é um exemplo
de programa urbanístico que seguiu um desenvolvimento endógeno apesar de recomendado também pelas agências
internacionais de desenvolvimento no último quarto do século XX. A permanência em áreas bem localizadas nas
cidades contra a remoção para áreas distantes foi uma conquista social no Brasil, fruto de muita luta das comunidades
de moradores de favelas e não simplesmente orientação externa. Até o início dos anos 1980, as favelas eram tratadas
como caso de polícia ao invés do reconhecimento de que a maior parte dos seus moradores eram trabalhadores
e, em muitos casos, como em São Paulo, trabalhadores da indústria fordista, produtora de automóveis. Os baixos
salários pagos aos trabalhadores industriais brasileiros é que explicam porque um trabalhador de uma indústria que
era avançada até a década de 1980 morava em favelas. Tratava-se e trata-se ainda da “industrialização com baixos
salários” que gerou uma “urbanização com baixos salários”: excluídos do mercado os trabalhadores constroem suas
moradias e até mesmo seus bairros. A derrocada do welfare state, ainda que em versão periférica, e o aumento do
desemprego apenas radicalizaram essa situação nas décadas de 1980 e 1990.
A grande dificuldade, no atual estágio da política para favelas é garantir a regularização fundiária e sua integração à
cidade oficial, garantindo assim a manutenção das áreas de circulação, da coleta do lixo, da varrição das ruas, das áreas
públicas, da iluminação pública e do padrão das edificações para evitar o excessivo adensamento e a insalubridade12.
Apesar de ser possível constatar alguns avanços em relação à política para favelas, é preciso reconhecer que o número
de ações de transferência de favelas de áreas urbanas valorizadas para fora das cidades, nos países não desenvolvidos,
ainda é bem maior do que a consolidação desses núcleos em espaços urbanos centrais ou relativamente centrais.
Predomina, a nosso ver (estamos nos baseando aqui em observação empírica e informações interpessoais), uma ação
de “limpeza” social que está relacionada à valorização imobiliária. Observando a realidade de alguns países da América
Latina, além da África do Sul e da Índia, poderíamos arriscar ainda uma hipótese: enquanto que os governos federais
afirmam a política de urbanização e de não remoção de favelas, os demais membros da federação agem francamente
pró-mercado privado transferindo favelas de locais valorizados. Em alguns casos, essa transferência apela para a violência
(como aconteceu em Durban) e em outros a terra (de onde a favela foi retirada) é simplesmente cedida ao mercado
privado (Nova Delhi)13. Não faltam, também, os casos de governos que fazem a urbanização de algumas favelas para
efeito de marketing, mas aplicam como regra a remoção quando se trata de área valorizada pelo mercado (é o exemplo
de São Paulo). A disputa pela terra urbanizada, ou a disputa pela localização na cidade, é acirrada em toda parte.
12. Evidentemente a consolidação dos moradores de favelas em determinado espaço urbano deve levar em consideração também as condições
geotécnicas e ambientais do terreno além da vontade dos moradores. Um grande número de publicações trata do assunto especialmente a
partir da definição das Metas de Desenvolvimento do Milênio. Além do GRHS – UN HABITAT 2002 ver a respeito GARAU, P; SCLAR, E. D.; e
CAROLINI, G. Y. A home in the city. London, Earthscan 2005. A bibliografia brasileira sobre o tema é muito extensa.
13. Sobre a violência utilizada para a remoção de favelas em Durban, ver a denúncia da ONG formada pelos moradores da Comunidade
Kennedy Road, no Jornal do Brasil Online, 12/out./2009 A informação sobre Delhi foi dada à autora por funcionário do governo local. No caso
de São Paulo, a Prefeitura divulga a urbanização de favelas especialmente para visitantes internacionais. Mas aplica outras táticas, incluindo a
agressão, quando se trata de remover conforme relato de diversas fontes: Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Fórum Centro Vivo.
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A disputa pela terra urbana: um tema crucial para as cidades
A propriedade da terra continua a ser, e talvez mais do que nunca, um nó marcado por
conflitos sociais no campo ou na cidade. Nas sociedades patrimonialistas ou oligárquicas
ela tende a adquirir maior importância, pois, como já foi lembrado, nelas o poder social,
político e econômico está relacionado à detenção de patrimônio. Com a globalização, a partir
dos anos 1980, a questão da terra tende a se agravar no mundo todo. Produtos primários
como minérios, celulose, grãos, carne, petróleo, etanol (commodities) ganham importância
estratégica nos mercados globais promovendo a migração de milhões de camponeses de
suas terras14. Excluídos do acesso à terra urbanizada, essa população migrante ou em alguns
casos, imigrante, amontoa-se em favelas já que a terra urbanizada é um bem precioso e
escasso nas cidades periféricas.
Determinados atributos que a terra pode ter — estar servida de infraestrutura urbana,
contar com equipamentos públicos e privados nos seus arredores, estar situada de frente para
o mar — não são reproduzíveis, ou pelo menos facilmente reproduzíveis, o que nos reporta
a uma condição de monopólio. Tanto esses atributos, como a legislação urbana que incide
sobre determinada propriedade, influem em sua maior ou menor valorização. A ampliação de
investimentos públicos ou privados nas proximidades de um imóvel tendem a ampliar seu
preço. A legislação que pode ser mais ou menos restritiva para a ocupação de determinado
pedaço de terra também influi no seu preço. A proximidade de favela tende a desvalorizar
um imóvel. São exemplos que mostram a condição que tem uma propriedade privada de
gerar renda fundiária ou imobiliária para seu possuidor e essa condição dá origem a uma
disputa que é crucial e ao mesmo tempo silenciosa pelo espaço urbano. Alguns lutam pelo
direito à cidade e outros por ganhos extras advindos de atividades que são especulativas, na
maior parte das vezes. E essa condição é tão dominadora das relações sociais urbanas que
frequentemente pobres que são proprietários rejeitam a vizinhança de pobres moradores de
favelas porque têm a consciência do impacto negativo que estes têm sobre o preço de seus
imóveis. Ainda que pertençam à mesma faixa de renda, os proprietários se antagonizam com
os não proprietários.
Essa disputa pelo valor de uso ou pelo valor de troca, ou ainda pela apropriação da valorização
fundiária ou imobiliária, é mais acirrada na cidade periférica onde estão presentes a escassez
de terras urbanizadas e a escassez de moradia. Nas cidades dos países centrais a regulação
sobre a terra e imóveis urbanos tornou-se historicamente mais efetiva. A democratização do
acesso à moradia e à cidade promovida especialmente durante o welfare state exigiu maior
controle sobre a terra e sobre os ganhos rentistas em favor do aumento da produtividade da
construção e da ampliação do acesso conquistado pelos movimentos sociais e sindicais.
14. A busca de terras aráveis para cultivo de alimentos tornou-se um rentável negócio internacional
que está ameaçando a expulsão de milhões de camponeses de suas terras, nos países pobres.
Segundo o Instituto Internacional de Pesquisas Alimentares (IFPRI), 15 a 20 milhões de hectares
de terra estão sendo comprados por países ou empresas constituindo transações internacionais.
Os países que mais venderam são Etiópia, Gana e Madagascar. Ver a respeito Relatório Instituto
Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), junho de 2009.
14
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A confusão registrária ou cadastral de imóveis e propriedades presente nas cidades periféricas
não acontece por acaso. Ela é funcional para o papel ambíguo que exerce a terra sobre as relações
de poder. A escala local de poder está bastante imbricada com os grandes empresários e
proprietários de terras e imóveis.
A retenção de terras ociosas urbanizadas e a consequente extensão horizontal das periferias
formadas pelo mar de moradias pobres eleva o custo do processo de urbanização e sua
insustentabilidade como todos sabemos. A “cidade dispersa” tem sido objeto de críticas de
urbanistas do mundo todo pela sua dependência do automóvel, um dos principais responsáveis pelo
efeito estufa, e pela impermeabilização extensiva do solo, entre outros aspectos. Nas periferias da
cidade periférica encontram-se o modelo disperso dos bairros pobres e sem urbanização com as
gated communities, bairros murados que seguem modelos principalmente americanos, resultando
numa urbanização dispersa mista e desigual, “à terceiro mundo”. Essa extensão horizontal,
pontuada por terras vazias que aguardam valorização, amplia os custos de urbanização de cidades
cujos orçamentos são restritos para a dimensão das necessidades sociais.
Em alguns casos, como acontece em cidades do Centro-Oeste do Brasil (Campo Grande,
Goiânia e Palmas), as terras vazias servidas de infraestrutura (água, coleta de esgoto, pavimentação,
iluminação pública) poderiam acomodar mais do que o dobro da população dessas cidades — o
que não impede de grande parte da população de rendas mais baixas estarem praticamente fora
do tecido urbano contínuo. Por outro lado, nas metrópoles, em especial no Rio de Janeiro e em
São Paulo, ganha maior importância o número de imóveis edificados vazios. Esse número se
aproxima do déficit habitacional de ambas as cidades. Esses imóveis se concentram nas áreas
mais centrais e, portanto, atendidas por infraestrutura e oferta de serviços urbanos. A tabela abaixo
mostra o significativo número de imóveis vazios em algumas das principais metrópoles brasileiras,
concentrados, principalmente, em áreas centrais mais antigas.
Municípios brasileiros com maior número de domicílios ociosos (vagos + fechados)
Municípios Total de municípios recenseados Total de vagos e fechados % sobre o estoque total
São Paulo (SP) 3.554.820 515.030 14,5
Rio de Janeiro (RJ) 2.129.131 266.074 12,5
Salvador (BA) 768.010 98.326 12,8
Belo Horizonte (MG) 735.280 91.983 12,5
Fortaleza (CE) 617.881 81.930 13,3
Brasilia (DF) 631.191 72.404 11,5
Curitiba (PR) 542.310 58.880 10,9
Manaus (AM) 386.511 51.988 13,5
Porto Alegre (RS) 503.536 46.214 9,2
Guarulhos (SP) 336.440 43.087 12,8
Fonte: IBGE/Censo 2000 – sinopse preliminar. 15
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Em síntese, a questão social da terra — e dos imóveis urbanos — é crucial para todos aqueles que querem
cidades mais justas e ambientalmente menos predatórias. A função social da propriedade se refere ao limite
que deve ter seu possuidor de usufruí-la diante das carências sociais e também diante das irracionalidades
causadoras da depredação ambiental.
A limitação do direito de propriedade privada da terra e de imóveis, visando à construção de uma cidade
mais justa e menos ambientalmente predatória, não é uma proposta radical de esquerda e nem mesmo
socialista. Podemos dizer, talvez, que é uma proposta progressista, já que ela pretende eliminar as limitações
impostas à ampliação da produção de moradias, seja pelo mercado privado, seja pelo Estado por meio das
políticas públicas. De fato, a retenção de terras ociosas dificulta a política habitacional de amplo alcance
já que o próprio Estado tem dificuldade de acesso a terra para programas públicos. E isso não se refere
apenas à moradia. O alto custo da terra resulta limitador para diversas iniciativas de políticas públicas como
a implantação de parques, ampliação do sistema viário, construção de equipamentos sociais como escolas,
hospitais, creches, centros comunitários, entre outros. Estudos efetuados nas cidades de São Paulo e do
México revelaram a dificuldade de pagamento de precatórios resultantes de terras desapropriadas para a
execução de políticas públicas, dado o montante da dívida após trânsito e decisão judicial sobre o assunto.
As limitações aos ganhos especulativos fundiários afetam mais os interesses oligárquicos e patrimonialistas
do que os interesses capitalistas stricto sensu. Mas é preciso reconhecer que o mercado residencial privado,
de um modo geral, se combina ao patrimonialismo nas cidades periféricas15.
A conquista do Estatuto da cidade: movimento de reforma urbana
A história do Estatuto da Cidade no remete à primeira metade do século XX como mostra o texto de José
Roberto Bassul, nesta publicação. Foram, portanto, várias décadas de um processo acirrado de embates
e de idas e vindas com a confrontação de interesses divergentes. Nesse processo merece destaque a
construção do Movimento Nacional de Reforma Urbana, que reuniu movimentos sociais (moradia, transporte,
saneamento), associações de profissionais (arquitetos, advogados, sanitaristas, assistentes sociais,
engenheiros), entidades sindicais, entidades acadêmicas e de pesquisa, ONGs, integrantes da Igreja Católica
(egressos do movimento religioso denominado Teologia da Libertação), servidores públicos, além de prefeitos
e parlamentares progressistas. Por ocasião do processo de conquista da nova Constituição Brasileira (1987),
foi criado o Fórum pela Reforma Urbana com a finalidade de unificar todas as iniciativas dos movimentos
urbanos que faziam reivindicações específicas e fragmentadas naquele momento. O Movimento Nacional de
Reforma Urbana constituiu uma experiência rara de movimento social que reuniu diferentes setores em torno
de alguns pontos prioritários da política urbana que ganharam unanimidade. Esses pontos foram organizados
em uma agenda que constituiu uma proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, subscrita por
131 mil eleitores, que foi apresentada à Assembleia Nacional Constituinte. Pela primeira vez na história do
Brasil, a Constituição Federal passou a contar com um capítulo dedicado ao tema das cidades e incorporar a
função social da cidade e a função social da propriedade16.
15. Ver a respeito a pesquisa do Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (LABHAB) da Universidade de São
Paulo: “Preço de desapropriações de terras – limites às políticas públicas”. 2001 www.fau.usp/labhab.
16.A Iniciativa Popular de Reforma Urbana foi apresentada, em plenário, por essa autora à Assembleia Nacional Constituinte em 1987.
16
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Os movimentos de luta por moradia, sempre maioria no Fórum de Reforma Urbana,
passaram a se preocupar com a localização da moradia na cidade e a refletir sobre a
necessidade de reivindicações menos imediatas como a mudança dos parâmetros que
regiam a propriedade fundiária no Brasil. A consciência histórica sobre a ilegitimidade da
“propriedade ociosa” teve origem nos movimentos de camponeses que, durante toda a
história do Brasil, enfrentaram a oposição dos latifundiários, também conhecidos como
“coronéis”. Estes comandavam milícias privadas e tinham poder de vida e morte sobre
escravos, que constituíam a maior parte da força de trabalho até o final do século XIX e a
população branca que, desterrada e deslocada no modo de produção escravista, dependia
dos mencionados coronéis para sua sobrevivência.
A primeira proposta de Reforma Urbana no Brasil, definida em um Congresso de
Arquitetos, em 1963, incorporou o conceito da propriedade ociosa como ilegítima, a
partir da cultura herdada da Reforma Agrária. Nessa proposta, uma das raízes do Estatuto
da Cidade, a questão da terra era vista como central para a transformação que o país
demandava. Nela estava presente, ainda, a criação de um organismo nacional que dirigisse
a política urbana e habitacional. Nesse período, que antecedeu o golpe militar de 1964, a
sociedade brasileira estava mobilizada em torno das Reformas de Base. Propostas com
significativa base popular eram elaboradas por intelectuais, profissionais, acadêmicos e
líderes sociais e sindicais e tratavam de temas como educação, saúde, administração
pública, cultura, além das Reformas Agrária e Urbana.
A primeira etapa (1964) da repressão ditatorial contra essa ofensiva de movimentos
sociais e sindicais se abateu sobre os setores populares. A segunda (1969) alcançou os
recalcitrantes opositores que tinham origem nas classes médias: estudantes, jornalistas,
intelectuais, professores, deputados e senadores, prefeitos, governadores, entre
outros. Cassações, tortura, censura, assassinatos promovidos pelo Regime Militar, que
se instalou no poder em 1964, tiveram o efeito de varrer as propostas de reforma de
todas as agendas e até das memórias durante muito tempo. A proposta dos arquitetos
foi incorporada pelo Regime Militar que a aplicou pelo avesso, constituindo um aparato
institucional tecnocrático, fortemente centralizado, de política habitacional, de transporte
e de saneamento, ignorando a questão fundiária. Considerando o vigoroso movimento
de construção de moradias e sistemas de saneamento que caracterizou essa política,
podemos dizer que foi bem-sucedido para seus propósitos (gerar empregos) embora
tenha privilegiado a classe média em detrimento da maioria da população.
Em meados da década de 1970, a emergência dos movimentos sociais urbanos
reivindicando melhores condições de vida se dá ainda quando a participação política
na sociedade era bastante cerceada. Essas mobilizações cresceram acompanhando
a exigência generalizada por liberdades políticas. É nesse contexto que surgem as
“prefeituras de um novo tipo” e uma “nova escola de urbanismo”.
17
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As prefeituras democráticas e a nova escola de urbanismo
Paralelamente ao retorno dos movimentos sociais à cena política, ainda sob contexto
da ditadura, têm início as experiências democráticas de administração municipal
(excluindo as capitais cujos prefeitos eram indicados por governadores que, por sua vez,
eram indicados pelas autoridades da Ditadura) com a eleição de prefeitos progressistas.
Começa um novo período no qual se colocavam em prática propostas elaboradas
nas mobilizações e organizações populares. Arquitetos, engenheiros, advogados,
assistentes sociais, geógrafos dedicaram-se a formular, por meio de processos
democráticos, novos programas e novas formas de gerir as cidades. Programas de
urbanização e regularização fundiária de favelas com novas formas de posse segura de
imóveis, programas voltados para a saúde das mulheres, programas de urbanização de
bairros periféricos, assistência jurídica gratuita à população pobre, soluções de moradias
individuais ou coletivas com assistência técnica de arquitetos e engenheiros, prevenção
e recuperação de áreas de risco geotécnico, esgoto condominial, componentes préfabricados
de argamassa armada para infraestrutura ou equipamentos coletivos, novas
técnicas de urbanização de córregos a céu aberto (condenando o tamponamento
de córregos), entre outros, começaram a incorporar a participação da população
nas decisões das administrações públicas. Com o fim da proibição da eleição direta
dos prefeitos das capitais (1985), essa dinâmica ganha novo impulso com prefeitos
progressistas administrando grandes cidades como Porto Alegre e São Paulo17. O
orçamento participativo realizado em Porto Alegre talvez tenha sido a experiência mais
marcante de controle social sobre os recursos públicos municipais nesse período.
Recuperar a bandeira da Reforma Urbana — após 24 anos de muita repressão
— reunindo movimentos populares que se reproduziam nas cidades de todo o País;
debater agendas de políticas locais, de organização e de demandas sociais por melhores
condições de vida; realizar experiências únicas e inéditas de participação social em
vários municípios brasileiros disputando a aplicação do fundo público; alargar o espaço
das “liberdades democráticas” desafiando o poder ditatorial com ocupações de terras
urbanas, todos esses acontecimentos promoveram um ambiente de euforia e confiança
entre os militantes. Enquanto a globalização neoliberal desmontava o welfare state nos
países centrais, no Brasil vivia-se um ambiente de muita agitação e esperança.
Apesar da pressão constante do Fórum de Reforma Urbana, a regulamentação dos
capítulos 182 e 183 da Constituição Federal foi aprovada no Congresso Nacional apenas
13 anos depois, sob a forma da lei federal nº 10.257/2001, o “Estatuto da Cidade”.
Este forneceu nova base jurídica para o tratamento da propriedade urbana. Do ponto
de vista formal, a mudança não foi pequena; impôs limitações antes impensáveis, no
Brasil, ao direito de propriedade.
17. Ver a respeito MARICATO, E. “Fighting for Just cities in capitalism periphery”. In
MARCUSE, P. and others (org.) Searching for the just city. London/NY: Routledge, 2009.
18
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Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, e a criação do Ministério das
Cidades, que também era uma reivindicação da agenda dos movimentos sociais urbanos,
tem início uma nova etapa de avanço das demandas sociais.
Em 2004, o investimento em habitação e saneamento é retomado após praticamente 24
anos de uma trajetória errática marcada pela ausência do investimento e pela destruição dos
órgãos públicos que tinham competência executiva sobre o assunto, com raras exceções
— a Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo (Sabesp) é a principal exceção.
Nesse mesmo ano (2004), foi criado o Conselho das Cidades, um organismo consultivo
que reunia lideranças sociais, sindicais, empresariais, acadêmicas, profissionais, entre
outras. Foram aprovadas duas leis federais que compunham a agenda do movimento de
reforma urbana: a Lei Federal que instituiu o marco regulatório do Saneamento Ambiental
(contrariando perspectiva de privatização que estava em disputa há 13 anos) e a Lei Federal
que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Essa lei condicionou os
repasses de recursos federais à existência de Planos Habitacionais, Conselhos e Fundos
estaduais e municipais.
Aparentemente, essas e outras conquistas não deixavam dúvidas de que o rumo
tomado havia sido vitorioso. Até mesmo a criação do Ministério das Cidades, que era uma
reivindicação do documento dos arquitetos de 1963 e que se realizou 40 anos depois,
poderia ser considerada uma grande vitória e um resgate da antiga luta.
19
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Uma política urbana para o Brasil: a sucessão de vitórias do movimento
Uma significativa lista de vitórias do Movimento Nacional pela Reforma Urbana tem seguimento às
primeiras experiências nas prefeituras democráticas no início dos anos 1980, passando pela crescente
expansão e organização dos movimentos sociais urbanos.
Vamos relacionar, abaixo, quais foram as principais conquistas sociais ocorridas nesse período.
1987 Emenda Constitucional de Iniciativa Popular subscrita por seis entidades da
sociedade civil. Criação do Fórum Nacional de Reforma Urbana formado por
entidades da sociedade civil.
1988 Promulgação da Constituição Federal com dois capítulos voltados para o tema
urbano, pela primeira vez na história do País.
1991 Apresentação de Projeto de Lei do Fundo Nacional de Habitação Popular como iniciativa
da sociedade civil, contendo assinatura de um milhão de eleitores (aprovado na Câmara
Federal como Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social em 2005).
2001 Promulgação da Lei Federal Estatuto da Cidade, que regulamenta a Constituição
Federal de 1988 — em especial a Função Social da Propriedade.
2003 Criação do Ministério das Cidades. Realização da Conferência Nacional das Cidades
resultado de um processo participativo que envolveu 3.400 municípios, todos os
Estados da Federação e contou com mais de 2.500 delegados eleitos para debater
a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (outras conferências aconteceram
em 2005 e 2007).
2004 Criação do Conselho Nacional das Cidades como órgão consultivo do Ministério das
Cidades. Criação do Programa Nacional de Regularização Fundiária Urbana.
2005 Aprovação da Lei Federal que institui o marco regulatório do Saneamento Ambiental
(contrariando perspectiva de privatização que estava em disputa há 13 anos).
2005 Aprovação da Lei Federal do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social que
implicou a criação de um fundo e conselho específico com participação social, além
de condicionar o repasse de recursos federais à existência de Planos Habitacionais,
Conselhos e Fundos estaduais e municipais. Nesse mesmo ano, foi lançada a
Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo prevendo a elaboração do Plano
para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes
.
20
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Em 2007, em sua segunda gestão, o governo Lula lança o Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC) retomando investimentos nas áreas de habitação e saneamento, abandonados há
praticamente 25 anos. O PAC constitui um plano keynesiano ou simplesmente um conjunto de
obras que pretende recuperar parte da infraestrutura voltada à produção (portos, ferrovias, rodovias,
usinas geradoras de energia) e parte da infraestrutura social e de habitação. Pelo PAC estão
previstos os investimentos de R$ 106 bilhões em habitação18 e R$ 40 bilhões em saneamento
(água e esgoto) entre 2007 e 2010. O programa de urbanização de favelas é prioritário para o
investimento dos recursos orçamentários federais no contexto do PAC.
Em 2009, como resposta à crise internacional iniciada em setembro de 2008, o Governo Federal
lançou o Programa Minha Casa, Minha Vida que pretende financiar a construção de um milhão de
moradias tendo como protagonista o mercado privado. Mas, pela primeira vez na história do Brasil,
está presente um montante de subsídios — R$ 16 bilhões — para financiar a moradia social.
Motivos para reflexão e novos desafios
Apesar da euforia que acompanhou os movimentos sociais, apesar das gestões
“democrático-populares”, apesar da nova política urbana e das importantes conquistas
legislativas as cidades pioraram, nesse período, de um modo geral, no Brasil. E não foi
apenas no Brasil que as cidades apresentaram um aumento da pobreza, do desemprego,
das favelas, dos moradores de rua, das crianças abandonadas e da violência como já foi
destacado aqui. Fez parte desse quadro um aumento explosivo da dívida pública cujos juros
drenaram grande parte dos recursos públicos para o mercado financeiro19. A herança de 25
anos de neoliberalismo não será superada facilmente. Se retornamos ao tema na conclusão
desta apresentação é para alertar para o rescaldo desses tempos que baniram os subsídios,
os direitos universais, a solidariedade, a fraternidade, os projetos coletivos, comunitários e
sociais. Enfim, no reino absoluto da mercadoria, tudo deve ser pago e a preço de mercado.
18. Os recursos financeiros do PAC Habitação são oriundos do mercado privado
– SBPE ou poupança privada – (39%), de um fundo semipúblico – Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), espécie de fundo desemprego formado
por contribuição salarial – (35%), contrapartida de Estados e Municípios (17%) e
orçamento da União (9%) Fonte: www.brasil.gov.br/pac.
19. Entre numerosas obras ver TOUSSAINT, E. Bolsa ou a vida: a dívida externa
do terceiro mundo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2002.
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Não é apenas no Brasil que está em curso uma verdadeira febre participativa promovida por entidades
governamentais, ONGs, partidos políticos, movimentos sociais etc. Do Banco Mundial à Via Campesina
a palavra de ordem é participação. O governo Lula promoveu 40 Conferências Nacionais organizadas a
partir dos municípios, passando pelos governos estaduais e entidades sociais até alcançar o nível federal.
Os temas são abrangentes: Juventude, Igualdade Racial, Direito dos Idosos, Política Cultural, Direitos da
Mulher, Direito dos Portadores de Deficiência, Direitos da Criança e do Adolescente, Saúde, Meio Ambiente,
Segurança Pública, entre outras. Participaram dessas conferências, a partir de 2003, dois milhões de
pessoas. As três Conferências Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007) tiveram a participação de mais
de 1.500 delegados eleitos em cada uma delas. No entanto, esse movimento participativo parece não ter
logrado transformar de modo significativo a qualidade da democracia e o quadro de exclusão urbana20.
A implementação do Estatuto da Cidade tem deixado muito a desejar desde sua promulgação em 2001
(ver o capítulo escrito por Edésio Fernandes nessa publicação). O padrão injusto e insustentável de ocupação
da terra urbana, que tem sido vigente durante séculos, ainda não mudou.
As forças contrárias à implementação da função social da propriedade, seja na sociedade civil, seja no
interior do poder judiciário, legislativo ou executivo têm usado diversos artifícios para protelar sua aplicação.
A Constituição Federal de 1988 exigiu uma lei complementar — o Estatuto da Cidade — que foi aprovada
apenas 13 anos depois. A Constituição e o próprio Estatuto exigiram ainda que a função social da propriedade
e outros preceitos se subordinassem ao Plano Diretor municipal. A maior parte dos PDs municipais, por
sua vez, está remetendo os instrumentos que regulam a função social da propriedade para lei municipal
complementar. Muitos municípios brasileiros ainda não têm aprovadas essas leis complementares e muitos
elaboraram PDs genéricos, cheio de boas intenções, mas sem efetividade.
Por outro lado, muitos governos municipais e vereadores progressistas se apoiam na lei para transformar
a realidade em diversos pontos do país. O Ministério das Cidades mantém um programa de regularização
fundiária, inédito na instância federal, que começa a apresentar os primeiros resultados e vencer as
resistências conservadoras. Com toda a dificuldade de implementação o Estatuto da Cidade anuncia um
novo futuro. Nós podemos dizer que uma parte do caminho já foi percorrida. De fato, aprovar a lei é apenas
uma parte do caminho. Resta continuar a tarefa de colocá-la em prática. Essa tarefa não é apenas do Estado,
dos governos e dos técnicos. Ela é também, e principalmente, uma tarefa da sociedade.
20. É preciso reconhecer que há um esforço de distribuição de renda pelo governo federal desde 2003. O Bolsa- família, um
programa que pretende assegurar uma renda mínima aos 40% mais pobres da população, atinge mais de 11 milhões de famílias
(2009). Ele se destina à população classificada como abaixo da linha de pobreza (com renda per capita entre R$60 e R$120) ou
extrema pobreza (até R$60 per capita). O Programa tem condicionalidades: a obrigatoriedade da família manter as crianças e jovens
até 17 anos na escola, o calendário de vacinas dia e o atendimento pré-natal a gestantes.
Entre 2002 e 2007 cerca de 20 milhões de pessoas deixaram as classes E e D e passaram a ser classificadas na classe C (critérios
IBGE). Saíram da miséria 9,7 milhões de brasileiros entre 2003 e 2007. O salário-mínimo teve um aumento real de 32% nesse mesmo
período. O Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) recebeu R$8,4 bilhões no ano agrícola de 2006/2007 e uma política de
crédito consignado abriu a perspectiva de setores de renda média baixa contraírem pequenos empréstimos (Governo Federal, 2008).
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Fonte: Ministério das Cidades.


http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/biblioteca/plano-diretor/publicacoes-institucionais/o-estatuto-da-cidade-comentado

Friday, April 09, 2010

Viável ou inviável??? Entrevistas...

Para engenheiro, remoção de comunidades inteiras não é 'viável'

A remoção de comunidades inteiras que vivem em áreas de risco não é uma solução viável, pelo menos no curto prazo. A avaliação é do engenheiro civil Elson Nascimento, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "É claro que, em alguns casos, as pessoas têm de ser removidas imediatamente. Mas não consigo pensar na retirada de comunidades, de bairros inteiros, de forma generalizada", diz.

Prefeitura poderia ter evitado tragédia
no morro do Bumba, em Niterói (RJ)
Choro, desespero e soterrados em Niterói
El Niño é o responsável pelas chuvas deste verão
Avô salva neto dos escombros em morro Rio
Internautas filmam tragédia no Rio; assista
Paes ironiza os que não acham chuva atípica
Há dois anos o professor coordenou um levantamento detalhado sobre as áreas de risco na cidade de Niterói. O plano de prevenção, no entanto, apesar de ter sido encomendado pela prefeitura, ainda não saiu do papel.

Com a intensificação das chuvas nos últimos dias e os consequentes deslizamentos, autoridades públicas voltaram a discutir a remoção de famílias que vivem em áreas de risco ou de proteção ambiental. Para Nascimento, essa é uma "questão complexa" e não pode ser discutida em um momento de "tensão". "No momento de crise, de tensão, como ficam toda a população e dirigentes, é comum sacarem soluções e ideias com o intuito resolver logo o problema. Mas o assunto tem de ser discutido em momento adequado e com soluções viáveis", diz o especialista.

BBC Brasil - O secretário de Defesa Civil do Estado do Rio, Sérgio Côrtes, demonstrou grande surpresa ao constatar que as casas, no morro do Bumba, estavam construídas sobre um lixão. É possível que um fato como esse tenha passado despercebido por tanto tempo?

Elson Nascimento - Eu estive nessa região há cerca de dez anos, justamente verificando um deslizamento de terra, com vítima. A ocupação estava começando ainda, com a construção de uma estrada de acesso ao ponto mais alto do lixão, o que alterou o caminho de drenagem natural das chuvas. A água, então, acabou descendo por uma região mais instável, arrastando casas. Naquele momento a gente constatou a presença de gás metano. Eram poucas casas, mas por causa do gás, sugerimos que as pessoas saíssem dali. Mas alguns moradores disseram que estavam gostando muito de morar ali e que estavam até chamando parentes, amigos, para ocuparem aquela área também. Essa comunidade expandiu em cima de um material impróprio para qualquer tipo de edificação. BBC Brasil - As autoridades sabiam? Nascimento - Sim, claro, isso era de conhecimento.

BBC Brasil - O poder público diz que o problema está diretamente ligado à ocupação irregular em algumas áreas. Até que ponto devemos esperar que o próprio governo coíba esse processo?

Nascimento - Esse é um assunto extremamente complexo. As pessoas não têm para onde ir e acabam assumindo esse risco. E o governo, por sua vez, não tem uma fiscalização eficiente. A gente não poderia apontar um ou outro culpado. Mas um programa de habitação, claro, tem que ser pensado, além de uma drenagem mais constante.

BBC Brasil - Se o senhor fosse apontar uma solução prioritária para essa questão dos deslizamentos, qual seria?

Niterói não implementou plano antidesastre
A prefeitura de Niterói (RJ) não colocou em prática um plano de prevenção de riscos elaborado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), com financiamento do Ministério das Cidades e da própria prefeitura. Finalizado em 2007, o plano custou R$ 120 mil e previa ações em vários pontos suscetíveis à ocorrência de desastres causados pela ação do tempo

Leia matéria completa
Nascimento - A drenagem, sem dúvida. Mas uma drenagem periódica. Sobretudo nas áreas que têm um mínimo de rede de escoamento das águas, o problema sério é a manutenção. Nenhum projeto de drenagem, por melhor que seja, vai funcionar se não for constante. E isso tem que ser feito de maneira preventiva, fora da época das chuvas. Esse é o maior gargalo. O problema é que, quando abre o sol, as prioridades do poder público mudam completamente. E aí, chega o fim do ano e tudo se repete. Nós, em um clima tropical, não sabemos ainda tratar de eventos climáticos. A gente só cuida deles no momento do acontecimento.

BBC Brasil - Algum país pode nos servir de exemplo?

Nascimento - Não sei se chega a ser exemplo, mas um dos países que tem um dos maiores problemas de drenagem no mundo é a Holanda, que teve em 1953 um acidente grave que matou quase 2 mil pessoas. Desde aquele período o país investiu muito nas obras de infraestrutura para drenagem, mas sobretudo na manutenção periódica. Lá, o administrador regional, na época que antecede o período chuvoso, ele tem de dar prioridade à limpeza das galerias e manutenção dos canais. Um pouco desse conceito a gente teria que adotar. Com essas chuvas aqui no Rio e em Niterói, a gente vê uma mobilização grande para retirar o entulho, as pessoas. Mas esse movimento não acontece antes das chuvas.

BBC Brasil - No caso do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, o prefeito Eduardo Paes decidiu que todos os moradores serão removidos, pois as obras de contenção seriam mais caras do que a transferência das famílias. Essa é uma solução que deve ser replicada?

Nascimento - A ocupação das encostas é uma situação muito ampla. E eu não vejo, de maneira viável, a remoção desse pessoal todo no curto prazo. É claro que, em alguns casos, as pessoas têm de ser removidas imediatamente. Mas não consigo pensar na retirada de comunidades, de bairros inteiros, de forma generalizada. Eu trabalhei em projetos do favela-bairro e um dos objetivos era esse, prover as comunidades mais carentes com serviços de água, esgoto e redes de drenagem. No momento de crise, de tensão, como ficam toda a população e dirigentes, é comum sacarem soluções e ideias com o intuito resolver logo o problema. Mas o assunto tem de ser discutido em momento adequado e com soluções viáveis. Precisamos aprender a discutir hoje o que vai acontecer durante as chuvas do final do ano. É assim que acontece nos países desenvolvidos. Não é aceitável que todo ano as chuvas causem calamidade em algum lugar, seja no Rio, em Niterói, seja em Angra, em São Paulo.

BBC Brasil - Como garantir que cada uma dessas cidades tenha um plano de prevenção? O senhor mesmo ajudou a fazer um plano para Niterói, que ficou pronto em 2007 e ainda está na gaveta...

Nascimento - Com certeza, a integração com o governo estadual precisa funcionar. Agora mesmo estamos vendo as autoridades do Rio solicitando ao governo federal cerca de R$ 370 milhões para lidar com o desastre, mas em nenhum momento se falou em um plano de risco. Acho que seria o momento para exigir isso. A prefeitura sempre busca a universidade para discutir a implementação desses projetos, mas isso não passa de discurso. O governo federal poderia, sim, exigir essa implementação em contrapartida à transferência de recursos.

BBC Brasil - Como é o plano e o que ele aponta como prioridade?

Nascimento - Ao todo são cinco relatórios, com diagnósticos de problemas, sugestão de soluções e de fontes de financiamento. Eu diria que o ponto principal, o mais imediato, é mesmo a criação de um sistema de drenagem para as águas das chuvas. Em diversas situações sugerimos, por exemplo, a construção de canaletas. Há também, claro, a necessidade de reconstrução da vegetação. Vale lembrar que também sugerimos medidas pontuais e de custo mais baixo, como a instalação de medidores de chuva, que Niterói não tem.

BBC Brasil - A cidade não tem um medidor, em nenhum ponto?

Nascimento - Não. Essas informações que temos visto e ouvido na imprensa, de que choveu 'tanto' em Niterói nos últimos dias, são feitas com base em estimativas levantadas pelos medidores instalados na cidade do Rio. O que é muito ruim, pois a possibilidade de deslizamentos está diretamente ligada à intensidade e volume das chuvas. O ideal é termos alguns medidores mais modernos, que podem custar até R$ 3 mil cada, mas também sugerimos as opções caseiras, feitas com garrafas pet. A própria população pode observar, de casa, o volume das chuvas e assim ficar mais atenta.

BBC Brasil - Quanto custaria a execução desse plano?

Nascimento - A estimativa é de que o plano possa ser todo implementado em cinco anos, com um gasto aproximado de R$ 19 milhões

Outras matérias:

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rio-janeiro-calamidade-ja-era-esperada-546735.shtml

http://veja.abril.com.br/em-profundidade/chuvas-no-rio-de-janeiro/

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/tragedia-era-previsivel-dizem-especialistas-546780.shtml

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/decadas-crescimento-planejamento-deixam-rio-sao-paulo-vulneraveis-546789.shtml

RELEMBRANDO


PLANO DIRETOR


Lei Complementar nº16, de 04 de junho de 1992


MEIO-AMBIENTE


Art. 44 - O uso e ocupação do solo urbano respeitarão os seguintes princípios e objetivos:

III - não remoção das favelas;

§ 1º - Estarão sujeitas à relocalização e, portanto, não incluídas no princípio mencionado no inciso III as áreas de favelas ou residências que ocupem:
I - áreas de risco;
II - faixas marginais de proteção de águas superficiais;
III - faixa de proteção de adutoras e de redes elétricas de alta tensão;

IV - faixa de domínio de estradas federais, estaduais e municipais;
V - áreas de especial interesse ambiental ou unidades de conservação ambiental;
VI - vãos e pilares de viadutos, pontes e passarelas e áreas a estes adjacentes, quando oferecerem riscos à segurança individual e coletiva e inviabilizarem a implantação de serviços urbanos básicos;
VII - áreas que não possam ser dotadas de condições mínimas de urbanização e saneamento básico, de acordo com os artigos 50 e 51 desta Lei Complementar.
§ 2º - Os moradores que ocupem favelas em áreas referidas no parágrafo anterior deverão ser relocalizados, obedecendo-se às diretrizes constantes do art. 138, § 2º, desta Lei Complementar e do art. 429, VI, "a", "b" e "c", da Lei Orgânica do Município.




Art. 70 - Integram o patrimônio paisagístico do Município, sujeitos à proteção ambiental, as
Seguintes áreas localizadas na Área de Planejamento 4:


VI – os Maciços da Pedra Branca e da Tijuca;




Lei Orgânica do Municipio

Art. 429 - A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos:
VI - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipótese em que serão seguidas as seguintes regras:
a) laudo técnico do órgão responsável;
b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções;
c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento;