Friday, April 20, 2012

Da Vila Operária de Marechal Hermes ao Minha Casa Minha Vida

Da Vila Operária de Marechal Hermes ao Minha Casa Minha Vida



Fonte:
http://oglobo.globo.com/rio/da-vila-operaria-de-marechal-hermes-ao-minha-casa-minha-vida-2772888


RIO - Nenhuma cidade brasileira expressa tão bem como o Rio de Janeiro a trajetória da produção habitacional promovida pelo poder público. Em 1911, há um século, o primeiro conjunto habitacional promovido pelo governo federal começou a ser planejado em Marechal Hermes, no subúrbio carioca. Foi um projeto solitário de um período em que o Estado liberal não intervinha na produção e locação da moradia, consideradas uma questão de mercado. Talvez por isso, suas obras ficaram paralisadas por décadas.

Com a Revolução de 1930, a habitação passou a ser tratada como uma questão social. O presidente Getúlio Vargas decretou a Lei do Inquilinato, facilitou o acesso ao lote próprio e iniciou uma significativa produção de conjuntos residenciais, através das Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões e da Fundação da Casa Popular, primeiro órgão federal específico voltado para a produção da moradia popular. A implementação de uma política habitacional universal foi frustrada, mas a qualidade dos conjuntos era excepcional, com propostas urbanísticas de vanguarda, diversidade, adequada inserção urbana e valorização do espaço público.

No livro "Pioneiros da Habitação Social no Brasil", que estamos organizando e será lançado no segundo semestre, essa produção foi inventariada e analisada em profundidade. O Rio de Janeiro foi palco privilegiado dessa ação, concentrando mais de um terço das unidades produzidas no país. Dentre os muitos conjuntos com interesse arquitetônico e urbanístico construídos no Rio de Janeiro, se destacam Realengo, Olaria, Pedregulho, Penha, Paquetá e Deodoro.

Em 1964, com o Banco Nacional da Habitação (BNH), surge um sistema financeiro com fontes estáveis de recursos, como o FGTS e SBPE, até hoje em vigor. Os aspectos financeiros e a massificação da produção predominaram sobre a qualidade, gerando homogeneidade, desrespeito às diferenças regionais e culturais, despreocupação com a inserção urbana e os impactos ambientais. Sem subsídios diretos, o acesso dos mais pobres ao financiamento se inviabilizou; as favelas e os loteamentos periféricos foram o seu destino. Conjuntos habitacionais sem qualidade, indiferenciados, criaram a falsa ideia de que a habitação popular não podia ser compatível com uma boa arquitetura, apesar de algumas exceções, pouco valorizadas pelos estudiosos.

A extinção do BNH (1986), em um momento de crise econômica e de redemocratização das instituições políticas, representou a perda da capacidade de investimento do sistema financeiro da habitação e marcou o rompimento com os paradigmas e a centralização que orientou as ações governamentais desde os anos 1930. Estados e municípios tornaram-se protagonistas e introduziram diretrizes inovadoras, como o reconhecimento da cidade real, a participação da sociedade, a incorporação do mutirão e autogestão e novas lógicas de inserção urbana.

Apesar de uma produção de pequena dimensão e muito desigual, recuperou-se a diversidade, qualidade do projeto arquitetônico e novas formas de inserção urbana. Algumas experiências municipais, como o programa de habitação social em São Paulo no governo Erundina (1989/1992) e o Programa Novas Alternativas, no Rio de Janeiro, criaram referências inovadoras, restabelecendo o vínculo entre arquitetura e habitação.

Mesmo sem distanciamento histórico, pode-se afirmar que o início do século XXI representou um momento de inflexão, marcado pela introdução do direito à habitação na Constituição (2000), Estatuto da Cidade (2001), criação do Ministério das Cidades (2003), do Fundo e do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (2005), com a formulação de uma nova política habitacional. O Plano Nacional de Habitação (Planhab) formulou em 2007-8 uma estratégia para equacionar o problema, propondo ações em quatro eixos estratégicos.

Em 2007, o governo federal, através do PAC, criou o maior programa de urbanização de favelas da história do país; em 2008, o Programa Minha Casa Minha Vida colocou em prática as propostas do eixo financeiro do Planhab, mas deixou de lado os demais, como a política fundiária, retomando uma produção massiva. Apesar do esforço da Secretaria Nacional de Habitação, o problema continua a ser enfrentado, a semelhança do BNH, com a mera construção de unidades, desarticulada da política urbana e social. A preocupação com a qualidade urbana e arquitetônica está longe de ser prioritária, assim como a adequação do programa às características regionais e urbanas específicas.

Além do interesse histórico, revistar a produção habitacional pode ajudar na reflexão sobre como intervir no presente. Ao contrário de outros tempos, existe hoje um forte sistema financeiro, com subsídio, uma capacidade institucional superior a do passado, embora ainda insuficiente, e um setor produtivo estruturado. Nunca as condições foram tão propícias para se realizar uma produção massiva com qualidade arquitetônica e adequada inserção urbana, combatendo a especulação com a terra. O resgate da história dos conjuntos habitacionais no Rio de Janeiro e sua divulgação podem contribuir nessa perspectiva.

Autor: Nabil Bonduki

*Arquiteto, professor da FAU-USP, autor do livro Origens da Habitação Social no Brasil
Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/da-vila-operaria-de-marechal-hermes-ao-minha-casa-minha-vida-2772888