Tuesday, January 18, 2011

Sobre chuva, lama, pedras..arquitetura e urbanismo


Sobre chuva, lama, pedras, mortes, arquitetura e urbanismo...
Paulo Afonso Rheingantz*

Diante dos recentes acontecimentos que destruíram e continuam a destruir sonhos e roubaram milhares de vidas de cidadãos de diferentes classes sociais nas cidades serranas do Rio de Janeiro, e diante do silêncio dos arquitetos - especialmente os acadêmicos, em sua maioria de férias (?!) - aos problemas "mundanos", gostaria de compartilhar uma reflexão incômoda que vem martelando minha mente, e que tem a ver com a discussão sobre o papel ativo dos não-humanos no coletivo urbano.
A mensagem foi inspirada em matéria recebida de uma amiga, de autoria do professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, Paulo Capel Narvai(que não conheço) relacionada com os recentes (e estarrecedores) episódios:
Inicialmente replico texto de Narvai sobre o "indivíduo sem alternativa, que compra e entra onde não pode etc", que se relaciona com as políticas públicas de habitação e ao planejamento (sic) urbano, rural e regional, tratados como “propriedade privada”, "como coisa de particulares... isso de "é meu e ninguém tem nada a ver com isso...".
A seguir, reforço pensamento de Narvai, sobre as "possibilidades" das "pessoas despossuídas (como sentido dado pelo Florestan)", de sua luta pela sobrevivência ... "é mais do que compreensível... as necessidades são imediatas e as decisões são movidas por desejos, vontade de resolver o problema de cada um, de cada família..."(Narvai) questões que, transcendem as necessidades e interesses pessoais ou familiares.
Por sua relevância social, estas questões são (ou deveria ser) de interesse público. As pessoas não se amontoam em lugares insalubres, de risco, porque querem; elas o fazem porque as políticas e ações públicas de habitação e de ocupação e planejamento territorial, em lugar de atender os interesses das gentes, são feitas para atender os interesses econômicos de determinados (e restritos) grupos. Os interesses das pessoas são "coisas aparentemente sem importância, menores...”(Narvai).
O planejamento e a ocupação do solo urbano não atendem aos interesses do coletivo urbano, que reúne atores humanos e não humanos - a esta altura do campeonato, me parede desnecessário argumentar que chuva, a lama e as pedras tem sido, ao lado dos políticos lideranças e moradores e visitantes locais, protagonistas ativos desta “tragédia coletiva”.
O processo de urbanização (ou seria mais apropriado falar de desurbanização?) privilegia os interesses (lucros) de determinados grupos ou setores da sociedade que, em geral, financiam as campanhas dos políticos em troca da aprovação de "leis tolerantes com ocupação de áreas tecnicamente não recomendadas para edificação/habitação" (Narvai) que servem para abastecer os cofres destes grupos. Prevalece a lógica do "já-que-pode-pra-ele-eu-também-quero-também-posso" (Narvai) de especuladores e construtores (alguns são arquitetos) que 'aplicam' parte de seus recursos para "mover vontades, 'quebra-um-galho' aqui outro ali e viabilizam um condomínio no pé-da-serra onde não deveria poder... São os sócios daquela "Construtora" S.A. que, quando não conseguem aprovar leis que viabilizem seus negócios imobiliários, toleram que seus empregados subornem funcionários públicos corruptos para que o negócio se viabilize ..." (Narvai). Se relaciona com um tipo de "capitalismo do cotidiano" que explora e "vende montanhas e mananciais...", que decide as políticas de ocupação territorial e de urbanização. (Narvai)
Fiel às suas raízes profissionais - saúde pública - relembra os esforços que redundaram nas políticas e ações urbanizadoras de sanitaristas, como Oswaldo Cruz e Emilio Rinas, para erradicar os vetores das doenças tropicais que assolavam o Rio de Janeiro - que deveria ser reurbanizado (foram demolidas inúmeras habitações e alargadas ruas e avenidas, consideradas insalubres - e Santos - onde foram construídos canais para drenar a cidade de Santos.
Segue uma pergunta incômoda: será que algum dia os arquitetos e urbanistas terão direito e reconhecimento de voz nestes assuntos? A julgar pelo nosso silêncio, é pouco provável. Nosso silêncio indica uma espécie de 'direito divino superior' que, mais dia menos dia, deve 'cair do céu'.
Enquanto isso, continuamos, do lado do mercado, a densificar e ampliar (ou seria destruir?) nossas cidades, e do lado acadêmico, a produzir belos e consistentes tratados e argumentos. Em comum, o descaso e o desconhecimento sobre as questões das gentes (humanos) e do ambiente (não-humanos). Estes procedimentos me fazem lembrar uma frase cunhada em tom de brincadeira quando cursei o mestrado em conforto ambiental: "a ética é, cada vez mais, uma questão de ótica".
Aqueles que questionam estas práticas são vistos como “chatos” ou “românticos” de dois matizes, não necessariamente excludentes ou contraditórios: ou são socialistas que questionam o sistema, ou são ambientalistas que defendem o mato, os animais, os rios e os lagos, ou são ambos.
A responsabilidade pela destruição dos sonhos, das casas, das vidas de milhares de pessoas e animais e do patrimônio cultural e ambiental das cidades e lugares atingidos, não é um problema individual. Sua solução não se resolve com ações setoriais. Não basta responsabilizar apenas os políticos, como insistem jornais e emissoras de televisão de circulação nacional. Este é um problema que, com maior ou menor parcela, nos atinge a todos, cuja solução implica em rever os dogmas de uma economia feita de números e de lucro; implica em rever os limites do crescimento econômico e do crescimento físico das cidades e da população; implica em rever as bases e fundamentos éticos de nosso sistema educacional; implica ainda, em rever nossa cumplicidade com práticas do tipo "ilegal, e daí?".
Como denunciou Schumacher no final dos anos 60 (O negócio é ser pequeno), "a expansão da economia destrói a beleza das paisagens naturais com edifícios medonhos, polui o ar, envenena os rios e os lagos. Mediante um condicionamento implacável, ela rouba das pessoas o seu senso de beleza, enquanto gradualmente destrói aquilo que há de belo em seu meio ambiente." O Rio de Janeiro, hoje mero arremedo de uma outrora Cidade Maravilhosa, submetido a um processo enfurecido de enfeiamento e de destruição das suas belezas naturais, que são (ou foram) a essência de sua beleza. A verticalização de sua orla marítima se assemelha a um tapume que esconde as suas belas montanhas.
Enquanto não foram modificadas as relações entre os humanos e o ambiente (aqui entendido como o conjunto de animais, plantas, artefatos e natureza), estes problemas tendem a se agravar. A cada ano as tempestades e fenômenos ditos naturais se tornam mais violentos e freqüentes. Dito porque penso se tratar de uma rejeição ao processo de crescimento que resulta de uma relação letal de causa-e-efeito.
Precisamos rever nosso entendimento de um mundo dividido em mente e corpo, interior e exterior, humanos e natureza, bom e mau, material e espiritual, idéias e realidade. Estas questões se misturam em um coletivo que reúne os diferentes sujeitos (humanos e não-humanos) em uma rede complexa e dinâmica de relações auto-implicadas.
Conforme observa a economista verde Hazel Henderson, precisamos reconhecer que as diversas “crises”, inclusive esta calamidade da região serrana do Rio de Janeiro, "estão todas arraigadas na crise maior de nossa percepção estreita e inadequada da realidade", e que "a economia não é uma ciência; é meramente uma política disfarçada". A autora sugere que a 'economia ecológica' terá de "entender como as atividades econômicas estão imersas nos processos cíclicos da natureza e no sistema de valores de uma determinada cultura."
O problema da região serrana do Rio de Janeiro não deve ser entendido como um problema dos “outros” (dos habitantes da região serrana), ou como um problema do sistema de valores da região serrana. É um problema coletivo de escala global que afeta e ameaça a integridade e a vida em escala planetária, decorrente em grande parte da irresponsabilidade dos humanos. Em uma biosfera global interligada, não existe “outro lugar” ou “outros interesses” (Henderson).
Enquanto isso acontece em nossa volta, e enquanto os alcaides do momento se ocupam de obras faraônicas e midiáticas como o novo Museu (projeto de Calatrava), o Porto Maravilha, com a enésima reforma do Maracanã, com as falácias sobre as obras dos jogos olímpicos de 2016, nas escolas de arquitetura seguimos trabalhando com exercícios e temas de projeto tão “importantes e necessários” quanto uma casa de um filósofo em uma ilha deserta - tema que, segundo Abelardo de Souza, justificou a reforma do ensino de arquitetura implantada por Lucio Costa em 1930 ... mudanças, só se um milagre cair do céu e nas mãos certas...

*Arquiteto Urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura - PROARQ-FAU/UFRJ

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