Wednesday, November 14, 2007

No centro, morando com a história

No centro, morando com a história
Fonte: O Estado de S.Paulo - 03/11/2007

Prédio de Ramos de Azevedo na São João é o primeiro restauro privado para habitação em SP

Daniel Piza

À direita de quem observa, há uma lojinha de filmes pornôs, destacando na entrada um cartaz que anuncia o filho de Gretchen como protagonista. À esquerda, já no terreno, há uma padaria antiga e escurecida, daquelas que são também restaurante e bar. Diante do prédio, um grupo de camelôs vende artigos de couro e bijuterias, virados de frente para um cinema também pornô, vizinho ao deteriorado Conservatório Musical de São Paulo. Mais perto da esquina da Avenida São João com o Vale do Anhangabaú, à noite, prostitutas fazem negócio e mendigos dormem sob uma marquise. É nesse cenário que nasce agora o Edifício Residencial Américo Simões, com arquitetura original de Ramos de Azevedo, autor do Teatro Municipal e de muitos outros projetos no centro paulistano. E ele já é um significativo sucesso.

Trata-se, afinal, do primeiro restauro privado para fins habitacionais da cidade. O prédio, erguido em 1918, ao lado do Centro Cultural dos Correios (bela obra arquitetônica com detalhes art nouveau, ora em reforma interna comandada pelo escritório Una Arquitetos), num quarteirão todo assinado pelo escritório de Ramos de Azevedo (1851-1928), é tombado pelo patrimônio histórico. Como outros de seu gênero, poderia ter se tornado banco, loja ou centro cultural. Mas não. Graças à iniciativa de um grupo de cinco empreendedores, representados pelo arquiteto Roberto Toffoli e pelo advogado Olavo Zago, ele se tornou um prédio de apartamentos, cuja entrega está prevista para maio de 2008.

Das 26 unidades postas à venda desde agosto, 22 já foram vendidas - 19 delas com sinal de 40% ou 50% e o restante dividido nos nove meses de obra - e as demais estão em negociação. Em três meses, nada menos que 600 visitantes estiveram na obra. "Essa é uma prova da demanda que existe por morar no centro de São Paulo", diz Toffoli. "Nós não esperávamos tanto." Os apartamentos, de um dormitório - no estilo "loft", quase sem paredes - e nenhuma vaga de garagem, têm de 35 a 45 metros quadrados, e o preço do metro quadrado é de R$ 2 mil. No primeiro e no último dos quatro andares, o pé-direito tem 3 metros; nos dois intermediários, 4,2 metros. Com portas e janelas grandes e cuidadosa arquitetura interior, a soma resultou muito atraente.

Mas não foi apenas pelo aspecto interior ou pela fachada que os moradores se sentiram atraídos. Apesar da degradação média do entorno, eles também ficaram seduzidos pela idéia de morar naquele ponto da história. "Comprei o apartamento e sonho com ele a cada dia", diz Marcelo Porto, advogado de 39 anos, dono de escola em Belo Horizonte, que tem o hábito de passar fins de semana em São Paulo. "Pois da minha janela, que na verdade é um balcão neoclássico, vejo o edifício Martinelli e, inclinando um pouquinho, me deparo com o Banespa, outro marco da cidade."

Toffoli e os parceiros descobriram em 2003 o prédio da Avenida São João, 300. De olho na tendência internacional de revalorizar os centros históricos para moradia, como já ocorreu em Nova York, Milão e Barcelona, decidiram comprá-lo. Ali funcionava desde os anos 40 um hotel decadente de 46 quartos, o Britania, e seu dono, Américo Simões, um senhor de 97 anos, estava interessado em vender o prédio com área total de 1.700 metros quadrados. Negócio fechado: R$ 600 mil. Com mais R$ 300 mil, os empreendedores começaram a restaurar o prédio, cujo investimento total chegará a R$ 1,5 milhão.

A obra não começou de imediato. Primeiro era preciso aprovar o projeto junto à Prefeitura e ao Estado, por se tratar de obra tombada. O tombamento, de nível intermediário, exige manter a fachada rigorosamente igual (inclusive sua cor, ocre amarelado) e a volumetria do edifício (a demolição de paredes internas foi aceita). A aprovação saiu em 2005. Ao mesmo tempo, eles tentavam financiamento na Caixa Econômica Federal, mas não conseguiram. Decidiram seguir mesmo assim e, embora o lucro não vá ser acima do normal (cerca de 30% sobre o valor final), a satisfação não poderia ser maior.

"Eu encaro isto como um projeto-piloto", diz Toffoli, formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. "Acho que é o primeiro de muitos que virão." Segundo levantamento da Prefeitura, há cerca de outros 40 prédios históricos no centro que poderiam ser recuperados para habitação, especialmente na Avenida São João e no bairro de Campos Elísios - além de mais 400 que não são tão antigos, sem assinatura de grandes arquitetos, mas que poderiam servir para que mais pessoas voltassem ao centro. Estão nas mãos de poucas imobiliárias ou famílias.

Toffoli não esconde que procura por novas oportunidades. Ali na mesma quadra, do outro lado da avenida (naquele único trecho de calçadão), já fez proposta por outro. Nesse quarteirão, por sinal, há uma grande praça interna que um projeto da Prefeitura pretende transformar num Parque das Artes, com equipamentos culturais e estacionamento. Como na Nova Luz e na Cracolândia, a idéia é revitalizar o centro não apenas recuperando patrimônio, mas também levando vida econômica e cultural a ele, para que se reintegre à cidade, saindo do estado deteriorado e desocupado de hoje.

"A questão habitacional é fundamental", diz Toffoli. "Sem ela, não se revitaliza de verdade o centro de São Paulo." Outro fator que ele considera fundamental é a participação da iniciativa privada e a abertura de linhas de financiamento para esse tipo de empreendimento em bancos como a Caixa. "A possibilidade de recuperar imóveis históricos dentro da lógica privada, que não onera o poder público e contribui para a recuperação de cenários representativos da nossa história", acrescenta, "é uma realidade". Desburocratização e conscientização, porém, são necessários.

"Acho que o olhar paulistano tem o foco apenas em novas regiões, como a Vila Olímpia", cita Marcelo Porto. Outro comprador, Arnaldo Cosmo, também de 39 anos, funcionário do Aeroporto de Congonhas, reforça: "A gente não valoriza o que é antigo." Mesmo assim, ambos apostam na redescoberta do centro não só para trabalho e lazer, mas para residência. Cosmo acha que "o charme está cada vez mais em morar próximo a pontos históricos"; por isso, não se incomoda com o fato de que todo dia precisará se deslocar dali até Congonhas, na zona sul, ainda que sonhe com uma linha de metrô. "Ali vou estar perto de tudo, em termos de lazer; não preciso de carro."

A questão da segurança não os incomoda tampouco. "O que tem no centro é batedor de carteira, pessoas querendo dar pequenos golpes, embromar", diz Cosmo. "Não se tem muito assalto a mão armada nem assassinato." Nascido no Rio de Janeiro, de onde saiu aos 7 anos, ele conta que deu de cara com o Edifício Américo Simões numa "caminhada sem destino", "chutando lata", viu a placa e decidiu entrar. "Achei que era muita coragem deles (dos empreendedores) e logo me encantei com o projeto." O condomínio deverá custar em torno de R$ 150.

VALORIZAÇÃO

A expectativa, claro, é que a região se valorize - e o prédio. Além das iniciativas do poder público, entre as quais citam também a Lei Cidade Limpa, a conclusão de obras como a do Centro Cultural dos Correios e a do Parque das Artes, eles apostam na tendência cultural de redescobrir o centro antigo. "Isso aqui não vai ser nenhuma Suíça, nenhuma Paris", diz Cosmo. "Mas tenho certeza de que vai ficar mais elegante" , complementa Porto. Ambos concluem: "São Paulo merece."

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