Para quem são feitas as cidades?
Para quem são feitas as cidades?
01 de julho de 2008 - 13:09
Fonte:Portal do Arquiteto
Flávia Boni Licht: Olhando das nossas pranchetas ou dos nossos monitores, o que se vê de uma cidade é uma intrincada e complexa trama, aparente e superficialmente bem arranjada - ruas e avenidas, redes de infra-estrutura e mobiliário urbano, parques e praças, residências e edifícios de apartamentos, condomínios, prédios públicos, cinemas, escolas, teatros, estádios, shoppings. Porém, quando transferimos o nosso olhar dos projetos e mergulhamos no mundo real, o que antes parecia bem arranjado, passa a mostrar uma outra face: aquela que exibe uma interação difícil dos usuários com toda essa estrutura semeada de obstáculos, que peca por não respeitar a diversidade física e sensorial das pessoas e as modificações pelas quais passa o corpo do ser humano da infância à velhice.
Fala-se muito no direito à cidade e esse direito passa por várias instâncias. Não podemos esquecer que o acesso e a circulação livre e autônoma nos espaços edificados é uma delas. Convém lembrar também que os obstáculos identificados como barreiras (urbanas, arquitetônicas, nos transportes e nas comunicações), não dificultam ‘apenas' a circulação das pessoas com deficiências. Um espaço não acessível torna mais difícil - e, muitas vezes, impossível - a vida de todos: idosos (que todos nós, um dia, seremos), crianças (que todos nós, um dia, já fomos), gestantes, obesos, pessoas muito altas ou muito baixas. E, mais do que tudo, acessibilidade significa projetar e construir espaços para a diversidade humana. Só que hoje parece estarmos esquecendo de pensar nessa diversidade e, conseqüentemente, no próprio ser humano como módulo para dimensionar nossas cidades.
Hoje, o importante é alargar mais e mais as avenidas para facilitar a circulação dos veículos, evitando engarrafamentos e nos fazendo cruzar as cidades ‘de passagem', em alta velocidade e, preferencialmente, sem estabelecer qualquer tipo de vínculo. Citando o arquiteto argentino Luís Grossman, "uma curiosa miopia parece limitar a questão da mobilidade urbana ao trânsito de veículos". E as pessoas? Como atravessam essas autênticas estradas urbanas? De quando em quando, em faixas de segurança com semáforos. Mas, até nesses locais, o automóvel tem o seu privilégio assegurado: o tempo de travessia concedido aos pedestres está longe de ser o necessário. De acordo com uma pesquisa realizada por técnicos dessa área, uma pessoa em idade de trabalhar caminha a uma velocidade de 1,0m/s; muitos idosos dão passos de 0,4m/s e, em muitas cidades, a ‘velocidade de marcha' utilizada para regular o funcionamento dos semáforos é de 1,2 m/s. Ou seja, sem fazer grandes cálculos, pode-se concluir que um idoso jamais chegará ‘do outro lado' caminhando de acordo com o seu próprio tempo. Podemos incluir nesse grupo que dificilmente chegará ‘do outro lado' uma pessoa numa cadeira de rodas, um pai com um bebê no colo e tantos outros exemplos.
Além da largura das vias e das formas de atravessá-las, vale lembrar que os caminhos das pessoas nas cidades são resultantes de várias ações seriadas e ininterruptas, onde desníveis devem ser transpostos, distâncias vencidas, controles acionados. Por essa razão, fala-se em cadeia de acessibilidade, em rotas acessíveis - da casa onde moramos precisamos chegar à calçada, cruzar a rua até a parada de ônibus, ingressar no veículo para realizar o deslocamento necessário até o trabalho, até a escola, até o cinema. Portanto, de nada adianta um município investir pesadamente na transformação de toda a sua frota de ônibus em veículos adaptados se, por exemplo, as calçadas seguem sendo irregulares com pisos deslizantes ou se a transposição da calçada à rua segue sendo por meio de um degrau e não por uma rampa.
Cabe destacar ainda a questão do mobiliário urbano: ‘orelhões', caixas de coleta de correspondência, bebedouros e lixeiras, que povoam as calçadas e reduzem o espaço de circulação dos pedestres, são importantes impeditivos para a circulação dos cegos, por exemplo. Antes de identificar a base desses elementos com o seu bastão, o deficiente visual já os ‘identificou' com a sua cabeça ou com o seu corpo... Em algumas esquinas, autênticas ‘plantações' de postes (usados como suporte de cabos de eletricidade e de telefonia, de luminárias, semáforos, sinalização de trânsito, placas de identificação de ruas, painéis publicitários, etc.), além de mostrar a ausência absoluta de coordenação entre os distintos organismos que tratam da gerência da cidade, criam verdadeiros labirintos nas calçadas.
E, em se tratando de iluminação urbana, ao pensar que todos os veículos têm ‘luz própria' e poucas pessoas andam com lanternas, deixo aqui uma dúvida que agora me ocorre: porque as luminárias das ruas são sempre e apenas colocadas sobre as faixas de rolamento dos automóveis e jamais sobre as calçadas?
Por Flávia Boni Licht - Por Flavia Boni Licht - Arquiteta, especialista em acessibilidade e representante titular do IAB-RS na Comissão Permanente de Acessibilidade de Porto Alegre.
Link : www.portaldoarquiteto.com/ponto-de-vista/flavia-boni-licht/para-quem-sao-feitas-as-cidades.html
0 Comments:
Post a Comment
<< Home