Tuesday, May 03, 2011

Quando a favela vira cidade

Quando a favela vira cidade
Urbanização de favelas, concursos, intercâmbios e verbas milionárias incitam debate sobre projetos de interesse social em curso na capital paulista
Fonte:Texto de Fernando Serapião
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 369 Novembro de 2010

Recentes exposições, publicações, intercâmbios internacionais e concursos de arquitetura colocam os projetos de interesse social na pauta do cenário construtivo paulista. As verbas milionárias do Executivo federal para o financiamento de casas populares estimulam o debate. Nesse acúmulo de experiências - em que se somam a ação dos governos municipal e estadual, a experiência de gestores públicos e de projetistas que se dedicam ao tema -, a discussão se potencializa por uma queda de braço de posições arquitetônicas e urbanísticas.
“Oi, moça! Fazendo o que aqui?”, exclama uma das 60 mil moradoras da favela de Paraisópolis enquanto caminha, disputando espaço com os carros em uma das vias mais movimentadas da comunidade.
“Trabalhando, ora”, responde Maria Teresa Diniz, sentada no banco do passageiro do carro em movimento, que diminui a velocidade para ultrapassar uma valeta.
“Vê se aparece, hein?”, Maria Teresa ouve, enquanto o Fiat branco conduzido pelo motorista ganha velocidade, com o obstáculo deixado para trás. Ambas se despedem com um aceno e um sorriso. Alguns metros à frente, com o veículo já distante, Maria Teresa confidencia: “Trabalho com muita gente aqui, e tenho boa memória, mas não me lembro dela, não”.
Maria Teresa é arquiteta. Tem 31 anos e um sotaque que denuncia a origem mineira. Magra, com nariz fino e arrebitado e cabelos batendo no ombro, seu sorriso é fácil. Formada no Instituto Metodista Izabela Hendrix, em Belo Horizonte, e com pós-graduação na Sorbonne, ela trabalha há seis anos na Secretaria de Habitação da cidade de São Paulo (Sehab), onde coordena o projeto de urbanização de Paraisópolis.
Pouco depois, ela orienta o motorista: “Vira à esquerda, vamos em direção ao Grotinho”. Naquela manhã de setembro, Maria Teresa estava em Paraisópolis para fazer uma reunião com uma líder comunitária. Antes de trocar a sapatilha por um tênis surrado e circular a pé, ela esperou em vão mais de uma hora no barracão da construtora que está finalizando a segunda etapa da licitação da urbanização da comunidade. O barracão é o QG local do projeto. Chega-se a ele seguindo uma rua típica do Morumbi, com casas enormes protegidas por muros altos. Após o segundo quarteirão, o contraste é evidente: os casarões ganham vizinhos diferentes do outro lado da rua.

Quem circula pelo Morumbi sofre um choque inevitável: a favela possui uma vitalidade incrível, todo tipo de comércio, centenas de pessoas nas ruas e carros trafegando com relativa facilidade, uma vez que há uma quadrícula de vias remanescentes do parcelamento do loteamento que foi invadido. A grande diferença aparente entre a cidade formal e a informal é a falta de regras, a ausência do Estado, o que a atuação da prefeitura tenta minimizar. Isso ocorre em tudo, desde as normas construtivas até as ruas sem mão de trânsito. “Colocamos placas, mas elas foram roubadas e a confusão voltou”, conta Maria Teresa. “Estamos tentando convencer a Companhia de Engenharia de Tráfego a colocar pinturas no chão ou placas de plástico, que não têm valor comercial, mas é difícil, pois isso fere o Código Nacional de Trânsito.”
A ação da prefeitura reflete o que proclamam, quase em uníssono, os especialistas no assunto: se a ocupação é antiga, o solo não está contaminado, não é área de risco, não está embaixo de viadutos etc., então deve ser urbanizada, o Estado deve garantir acesso aos serviços públicos essenciais - como água, esgoto, coleta de lixo - e dar posse aos moradores. Mesmo porque, não há recursos para a construção nem glebas centrais disponíveis para conjuntos habitacionais. Por isso, o carro-chefe da Sehab é a urbanização das favelas. O trabalho que está em curso é gigantesco - o mais amplo já realizado no continente - e pretende, nesta gestão, contemplar 1/3 da população que vive nessa situação. Se esse ritmo for seguido, o governo estima que em uma década e meia todas as comunidades estarão atendidas.
O trabalho começou a ser planejado com uma atualização de dados, que desde a década de 1980 estavam sem correção. Sem conhecer a fundo o problema, não há como planejar. Por isso, a secretaria criou um sistema de informações gerenciais batizado de Habisp (que pode ser visualizado no site www.habisp.inf.br). O programa possui um sistema de pontos, recalibrável conforme o enfoque, que elege prioridades. Os indicadores de risco, por exemplo, possuem peso alto e ajudam a tornar uma ação urgente. Outro exemplo: no que se refere à infraestrutura, o esgoto tem maior peso do que a pavimentação. Esse trabalho, mais a ação da equipe, fez com que a fatia de verbas da Sehab no Orçamento municipal passasse de 1,5% em 2005 para 4% em 2010.
Moderno x pós-moderno
Nesse ínterim, novas unidades habitacionais são criadas para atender as famílias retiradas de áreas de risco. Outra mudança que ocorreu nesta gestão e é fundamental para a qualidade do trabalho: há um esforço para não utilizar projetos padronizados, contratando cada um para obras específicas. Grande parte da responsabilidade dessa iniciativa é de Elisabete França, que é superintendente de Habitação Popular da Sehab e chefe de Maria Teresa. Com isso, o debate sobre arquitetura em habitação social, que hibernava em São Paulo, ressurgiu. Claro: dentro das academias, esse tema não saiu da pauta, na graduação ou na pós-graduação.

A diferença é que nos gabinetes públicos, por vontade política e qualidade do corpo técnico, a arquitetura voltou à baila. Estúdios como MMBB e Brasil Arquitetura estão trabalhando para o governo. “Há uma mentalidade herdada da época do BNH que entende que as classes mais baixas devem receber arquitetura de má qualidade. Então, fazemos licitação de obras com projetos básicos - não dá para fazer com projeto executivo, pois o processo é muito dinâmico - e a empreiteira escolhida contrata o projeto de arquitetura”, contou-nos Elisabete, em entrevista publicada na edição 364, de junho passado.
E o debate se instala justamente nos projetos de arquitetura: se poucos discordam em relação à necessidade de urbanizar as favelas nos casos indicados, há diferentes pontos de vista quanto à forma que devem ter as habitações que surgem dentro das comunidades. Grosso modo, há duas tendências facilmente identificáveis, oriundas de uma discussão antiga: de um lado, a herança moderna, sistematizada de forma racionalista, notadamente visível nos volumes laminares e unidades repetitivas; no outro extremo, ecoa o discurso pós-moderno, que procura mimetizar as construções no ambiente.
Integra o primeiro grupo o pequeno volume que Marcos Boldarini criou no Grotinho, um acidente topográfico assustador no meio de Paraisópolis. Em dezembro de 2005, a área foi inundada e 40 famílias saíram às pressas. De lá para cá, a urbanização da região retirou dezenas de barracos da encosta e corrigiu o problema de drenagem das águas pluviais. “Já projetamos filmes ao ar livre aqui”, conta Maria Teresa, andando em frente ao prédio.

O bloco de Boldarini - composto por um volume pavilhonar principal e um anexo mais alto, que se adapta à topografia - está em construção e terá comércio no térreo e quatro unidades no piso superior. O arquiteto também é o autor do conjunto no Jaguaré, formado por lâminas paralelas. Boldarini tem 36 anos. Seu interesse por projetos públicos vem desde os bancos da faculdade, ele diz. Foi estagiário de Elisabete França e hoje tem escritório próprio com oito funcionários, atendendo praticamente só a demanda social.
“Não tenho paciência para escolher acabamentos para casa de cliente rico”, conta Boldarini. “Eu trabalhava para André Herzog quando perguntei como é que se começava uma carreira de arquiteto. E ele me respondeu com um sorriso sarcástico: ‘Primeiro, você precisa monopolizar todos os projetos de sua família’. E eu pensei: estou lascado, na minha família ninguém contrata projetos”, relembra enquanto dirige seu carro pelos labirintos do extremo sul da cidade. A atuação em projetos públicos lhe rendeu um dos destaques do Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza. “Quando Ricardo Ohtake me convidou, perguntei, surpreso: ‘Por que eu?’”, confessa. No espaço veneziano criado por Henrique Mindlin e Giancarlo Palanti, Boldarini apresentou um dos projetos mais simbólicos da reurbanização de favelas em São Paulo, que é o Cantinho do Céu.
“Vocês aceitam?”, oferece uma menina que servia guaraná Dolly aos amigos no deque do Cantinho do Céu. O projeto recuperou as margens de um trecho da represa Billings, que agora é usado pela comunidade. “Incrível, mas quase ninguém se dava conta do potencial da represa: era fundo de lote para as casas”, conta Boldarini, depois de recusar o guaraná.
Outro projeto que se aproxima do conceito usado por Boldarini é o conjunto de Paraisópolis desenhado por Edson Elito, Joana Elito e Cristiane Takiy. A equipe teve 30 dias para fazer o desenho básico e, contratada pela construtora que venceu a licitação, mais 60 dias para o executivo. São quase mil unidades subdivididas em vários blocos e duas tipologias diferentes. Em linhas gerais, as lâminas podem ser implantadas paralelamente às curvas de nível ou de forma perpendicular. A topografia ajuda a verticalizar: como todos os prédios construídos pela prefeitura, os de Elito não têm elevador, e, com acesso pela metade, pode-se construir quatro pavimentos para cima e quatro para baixo. As unidades possuem cerca de 50 metros quadrados e dois dormitórios; podem ser totalmente redivididas, pois os blocos autoportantes delimitam o perímetro de cada uma.
Recente reportagem publicada na Folha de S. Paulo chamou a atenção para a decoração das unidades desse conjunto: alguns têm sanca de gesso e até decoração realizada por profissionais, um processo que o jornal chamou de Favela Cor. A equipe de arquitetos destaca o tipo de janela adotado, que possibilita abrir totalmente o vão. Nem alguns prédios de alto padrão têm esse privilégio, garante Elito. “Uma das críticas que fazem ao nosso projeto é que ele é moderno demais”, conta. Joana, sua filha, argumenta: “Para mim, isso é elogio”.

O paradigma do projeto é o S maior ícone moderno do tema: o conjunto do Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy. Essa referência já estava patente na matriz da proposta de Paraisópolis: o Conjunto Pascoal Melantonio e Celso dos Santos, do Projeto Guarapiranga, criado por Elito em parceria com Abrahão Sanovicz, João Honório de Mello Filho e Marcos Carrilho. Entre Guarapiranga e Paraisópolis, a maior diferença é o telhado do primeiro, exigido por Lair Krähenbühl, secretário municipal da Habitação na gestão Paulo Maluf (1993/96). “A população quer telhado”, ele teria dito.
“Nosso trabalho não dá continuidade àquela condição quase medieval”, rebate Elito, sentado à prancheta. “Não acreditamos na hipótese de mimetizar a favela.” Outra crítica que Elito já ouviu a seu projeto em Paraisópolis é em relação à densidade: por que verticalizar a favela? Nesse sentido, é uma resposta à demanda de moradores retirados de áreas de risco. Vejamos os números. Seu conjunto possui densidade maior do que a da favela: os prédios novos apresentam 841 hab/ha, contra a média de 606 na comunidade.

Os prédios em Paraisópolis são agrupados em blocos, cada qual cercado por um gradil. Nesse ponto, a utopia moderna se encontra com a realidade, como no gradil que cerca o Mube. “Tentamos argumentar, deixar tudo aberto, mas pela experiência da secretaria eles acham que não funciona”, diz Elito. O contraste com a favela é intenso. “Se não cercarmos e definirmos as áreas, logo tudo é invadido por comércio, estacionamentos irregulares e até barracos”, argumenta Maria Teresa, enquanto circula pela passarela de acesso do condomínio B, pintado de verde. “E se isso ocorre, não temos como dar posse aos moradores dos apartamentos”, conclui.
Nessa mesma linha, a favela de Heliópolis está ganhando prédios circulares, desenhados por Ruy Ohtake. O arquiteto foi contratado pela secretaria a pedido da comunidade, que com ele mantém um relacionamento estreito. “Conseguimos fazer essa forma - que não tem apartamento de frente nem de fundo - usando o orçamento existente”, contoume Ohtake, enquanto apontava para o conjunto. “Não podemos chamar isso de conjunto habitacional: é condomínio”, postulou, circulando entre a Etec e o centro cultural que desenhou em Heliópolis. “Agora vou fazer a biblioteca”, contou.
Pós-moderno e terceira via?
No outro corner arquitetônico estão os defensores de blocos que reflitam o espírito urbano e valorizem a rua. Em São Paulo, o maior partidário é Hector Vigliecca: “Temos que construir cidades, e não casas”, vive argumentando. Claro que esse debate não é novo: desde o início da década de 1990, os projetos de habitação social no Brasil revelavam essa polarização. Os desenhos de Demetre Anastassakis para o Mutirão São Francisco, em São Paulo e, principalmente, na favela da Maré, no Rio de Janeiro, exemplificam esse tipo de trabalho que se apropria da estética da pobreza, realizada em mutirão: acabamentos de blocos à vista, volumetria que, apesar da ordem geométrica, valorizam arranjos desordenados, telhados inclinados etc. Outra proposta do gênero é a de Paulo Chaves Fernandes, em Belém. Indo mais longe, vamos encontrar essa discussão, que percorre grande parte da produção nacional, muito mais nos corações e mentes dos arquitetos do que nas ações governamentais. Só a respeito do uso de tecnologias distintas para a habitação social, há casos interessantes, como a utilização de madeira (Zanine), taipa (Borsoi) e argamassa armada (Lelé).
O fato novo é a interação internacional, seja acadêmica ou profissional, que traz elementos para a conversa. Do ponto de vista acadêmico, diversas instituições de prestígio, como Harvard e Colúmbia, nos EUA, têm feito exercícios que propõem, entre outras coisas, lajes-jardim sobre a favela ou habitações escalonadas nos morros. Por outro lado, a secretaria paulistana também contratou nomes interessantes da cena internacional. O arquiteto suíço Christian Kerez, por exemplo, radicalizou o conceito de integração saber acadêmico/popular, criando uma proposta para o Jardim Colombo, em Paraisópolis, com blocos que parecem construídos pelos usuários. Também em Paraisópolis, o grupo chileno Elemental - liderado por Alejandro Aravena - apresentou um projeto junto à via Perimetral (que está sendo aberta para ligar a região do estádio do Morumbi à avenida João Dias). Uma espécie de variação verticalizada de seu famoso projeto no Chile: uma “base” é construída com vazios que podem ser usados em ampliações.

“É melhor entregar uma boa meia-casa do que uma inteira ruim”, é o discurso. O resultado no Chile, após alguns anos, apesar de fora do controle formal dos arquitetos, fascina os projetistas do país, que fazem questão de mostrar o que ocorreu. Certamente, estamos diante de uma espécie de terceira via entre o moderno e o pós-moderno, que estabelece desenho contemporâneo mas permite (e até deseja) intervenções dos usuários. Se para os modernos isso era um crime - lembro-me do famoso exemplo em Casablanca, fruto da aplicação das ideias de Corbusier, com os vazios totalmente ocupados décadas depois -, para os pós-modernos poderia até ser aceito.
Há um ano e meio a Sehab está confeccionando uma espécie de manual de diretrizes de projetos para que os arquitetos e funcionários tenham mais parâmetros para avaliar as propostas. A ideia, apoiada em proposta semelhante desenvolvida pelo espanhol Josep Maria Montaner, contou com a participação em workshops de construtores, arquitetos, assistentes sociais e outros agentes, a fim de recolher dados para formatar o volume, cuja primeira versão deve ser finalizada ainda este ano. Em um desses encontros, em que se abordavam as unidades, Vigliecca questionou: “Não devemos discutir os apartamentos, e sim as cidades”. De bate-pronto, foi rebatido por um colega: “Mas professor, o senhor é do júri do concurso da CDHU!”.

Esse concurso, batizado de Habitação para Todos, alimenta ainda mais o debate. Ele foi promovido pelo governo do estado, que, até o momento, só utiliza projetos-padrão. Com seis categorias, não foi muito concorrido (de sete a 14 equipes participaram em cada categoria), mas revelou trabalhos interessantes, como os das equipes dos jovens Augusto Aneas, Fernão Morato e Guilherme Gambier Ortenblad (Zoom Arquitetos), que venceram na categoria casas escalonadas; Gregory Bousquet, Carolina Bueno, Olivier Raffaelli e Guillaume Sibaud (Triptyque), ganhadores para edifícios de quatro pavimentos; e Lucas Fehr, Mario Figueroa e Daniel Bonilha (Estúdio América), vencedor entre os edifícios de seis e sete pisos.
Resta saber o que o governo do estado vai fazer com esse resultado.
Fonte:Texto de Fernando Serapião
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 369 Novembro de 2010